2020-06-06

Um pouco sobre a arte de despertar para o coração

Este artigo relaciona a experiência que vivi em sonho em trinta e um de janeiro de 2018, com aquela vivida pelo irmão Francisco, Sūrya Yogi Dāsa1, em novembro de 2019 e comunicada aos membros do Śuddha Sabhā Ātma e da Grande Síntese no início de dezembro.

Irmão Sūrya fora instruído a orientar os membros da instituição para reservarem o dia vinte e cinco de cada mês como o Dia de Ação de Graças, destinado à reflexão sobre a espiritualidade universalista e laica do Śuddha Yoga, estabelecido na Bhagavad Gītā. Esta pode ser traduzida como a arte e a ciência do estabelecimento da sintonia fina com as diversas frequências das ondas de amor do Espírito Universal (Ātman), transmitidas a partir da “rádio cósmica” presente em nosso próprio coração. Na “rádio do coração” estão todas as faixas de frequência, desde os reinos das paixões inferiores, de base material, até os mais elevados estados de comunhão e unidade com a fonte da vida. Simbolicamente, o coração é tanto a sede da consciência egóica e material (Ahamkāra), com toda a carga genética das paixões inferiores, como da consciência universal e pura (Ātman), origem da vida e dos sentimentos intuitivos superiores.

Na medida em que elevamos a qualidade das nossas ações, as vibrações do nosso ser sintonizam as frequências superiores da “rádio cósmica do coração”. Do mesmo modo, pensar em coisas inferiores estimula as frequências de medo, vingança e demais paixões menos nobres. Temos que aprender, portanto, como operar o “controle remoto” deste aparelho de rádio para acessar as faixas dos sentimentos superiores do Espírito e viver em estado de perfeita alegria (ānanda) e graça (samādhi).

A arte de despertar para o coração

Era a madrugada da lua cheia do dia trinta e um de janeiro de 2018, a super lua azul de sangue, quando tive uma experiência espiritual que me revelou como retratar a vida de Francisco Barreto, o irmão Sūrya, um autêntico Śuddha Yogi contemporâneo. Duas semanas antes, no dia dezesseis de janeiro de 2018, durante a celebração da cerimônia de Mitradeva, já havia recebido a confirmação espiritual de que deveria documentar a vida e  obra de Francisco Barreto, conforme ele mesmo me pedira havia alguns anos, durante aquela sua experiência de êxtase místico, presenciada por mim, em 30.12.10 (veja aqui). Agora sentia que encontraria a forma correta para tratar do processo da ascese mística de Francisco (veja aqui como a serie, iniciada em 22.07.20, vem sendo desenvolvida).

Irmão Sūrya tem sido um farol ao longo dos últimos quase cinquenta anos e a sua intensa e ininterrupta prática de Śuddha Yoga o levou a estabelecer, de forma objetiva, as suas bases concretas e empíricas. Os conceitos, as teorias e as doutrinas só ganham sentido, significado e verdade quando testados e validados na práxis do cotidiano, por alguém, que os tornam, pelo exemplo, reproduzíveis e acessíveis aos aspirantes devotados à realização Suprema. Quem teve a oportunidade de conhecer irmão Sūrya mais de perto (no sentido da proximidade de coração a coração) sabe que ele sempre viveu de forma não sectária, dedicando-se, em especial, àqueles que estavam dando os primeiros passos na vida espiritual, auxiliando-os a identificar e decodificar os sinais sutis da presença do sagrado nas experiências mais banais da vida cotidiana.

Desde que o conheci, em 1977, sempre que conversávamos, via nascer em mim os sentimentos mais nobres, como se o nosso diálogo fosse o próprio diálogo da Bhagavad Gītā. Este sentido dialógico da nossa relação mantém-se intacto até hoje e já estava presente na dedicatória e explicação, que ofereci no Prefácio do meu primeiro esboço do glossário śuddha, intitulado “Yoga Brahma Vidya Sanhita” (veja aqui), escrito ao longo dos quatro anos em que convivi com Irmão Sūrya no Ashram Atma, e que pretendia, um dia, tornar um glossário abrangente e exaustivo do Śuddha Yoga. Não considero uma simples coincidência o fato do trabalho ter sido concluído e assinado em um dia vinte e cinco, ou seja, em vinte e cinco de dezembro de 1990, um dia pleno de graça e que representa também o início de uma nova etapa em nossas vidas. Irmão Sūrya deixava o Ashram Atma e a visão ainda sectária que caracteriza as instituições religiosas, para poder dar início ao projeto espiritualista da Grande Síntese. Cássia e eu, do mesmo modo, saíamos daquela rica experiência do Ashram para atender a um chamado superior, para dar forma concreta à espiritualidade pura, universal e laica da Bhagavad Gītā. Livre de todos os dogmas e condicionamentos das instituições religiosas, iria, finalmente, me tornar um intérprete e um interlocutor da espiritualidade pura, expressa no Śuddha Yoga da Bhagavad Gītā

Capa do Glossário
Poucos dias depois daquele Natal, quando entreguei ao irmão Sūrya, em mãos, o exemplar autografado do glossário, fizemos a nossa mudança de volta ao sudeste, mas não para São Paulo, de onde partíramos logo após o nosso casamento, e sim para o Rio de Janeiro, onde um novo projeto, profundamente enraizado no entendimento dos ideais universalistas do Śuddha Sabhā nos aguardava.  Iríamos procurar fazer da nossa casa uma extensão do Śuddha Sabhā.2

Até dar início à datilografia do manuscrito do glossário, mantido em diversos cadernos avulsos de anotações, praticamente, não sabia utilizar uma máquina de escrever. Aprendi datilografia ali, datilografando, diariamente, vagarosa e cuidadosamente, letra por letra, procurando evitar os erros, os borrões e a necessidade de ter que datilografar a página toda outra vez. Muitos erros passaram e uma errata nunca chegou a ser providenciada.

Reproduzo a seguir a dedicatória e a explicação, presente no Prefácio, sobre o sentido profundo da amizade espiritual que uniu irmão Sūrya, Cássia e eu, e que ganha, agora, um significado novo e ainda mais completo, consoante o que pretendo descrever a seguir neste ultimo artigo do sétimo capítulo deste compêndio:
À minha esposa Cássia;
ao meu Instrutor de S. Raja Yoga, Francisco Barreto Neto; e
ao Ishwara que reside no coração de todo homem. (1990, i)

Aprendemos com a ajuda do mestre até que um dia o coração fala e ganhamos então um novo mestre, verdadeiramente, nascemos para o mundo interior. Rompemos o cordão umbilical e ensaiamos os primeiros passos; experimentamos uma fonte nova de conhecimentos, de desejos e agimos com motivos de uma natureza distinta dos até então experimentados. Assim, com o tempo, precisamos cada vez menos do pai como instrutor e mais como um amigo; assim estreitam-se os laços do amor. Com o tempo ficamos cada vez menos sujeitos às quedas, vamos descobrindo no coração a Veracidade, que nos previne contra Moha, a precursora das quedas. Aos poucos, vamos compreendendo o significado real dos três aforismos que postulam a divindade objetiva, subjetiva e transcendente. Então, compreendendo o funcionamento cósmico, já não nos ofenderemos por nada, já não nos sentiremos mais vítimas de nada, nem culparemos mais ninguém por nada. Não. Teremos vencido Moha e compreendido que viver conforme a ética Suddha é agir sempre pleno de amor, na unidade que existe na infinita diversidade. (1990, v)
Preferi, naquela ocasião, fazer a dedicação ao irmão Sūrya utilizando o seu nome de batismo, Francisco Barreto Neto. No entanto, em situações específicas, ele já se apresentava e assinava como Sūrya Yogi Dāsa. O valor do glossário é simbólico. Ele representa um dos raríssimos documentos daquela fase de mudança do Śuddha Sabhā Ātma, da sua antiga instituição mantenedora, o Ashram Atma, para a Grande Síntese. Representa o momento de encerramento de um ciclo, tanto na vida do irmão Sūrya, como na nossa. Esse processo havia começado a se desenhar dois anos antes, conforme descrevo no histórico de constituição da Grande Síntese (veja aqui e aqui), a partir da viagem do irmão Sūrya à Índia, em meados de 1988, para passar um mês com Sri Anantram, o Presidente mundial da organização religiosa. Este, contudo, passou para a guarda do irmão Sūrya praticamente tudo que herdara do dirigente anterior, Sri Janardana, falecido em 1966. Era como se Sri Anantram estivesse antevendo a extinção da sua função religiosa, o que, de  fato, viria a ocorrer poucos anos depois, com o seu desligamento da instituição.

Com a saída de Sri Anantram consumou-se o plano previsto desde os tempos de Dr. Sir. S Subramanier e do Pandit K. T. Sreenivasacharya para que a espiritualidade pura e laica do Śuddha Yoga fosse estabelecida a partir da sua filosofia e práxis sintrópicas, unicamente, com o seu lado religioso funcionando como uma escola preparatória, dirigida por instrutores encarregados introduzir e preparar os iniciantes e a si próprios para um futuro ingresso nas câmaras interiores da vida espiritual, caracterizadas pelo contato direto com os Mestres internos, conforme as iniciações outorgadas diretamente por eles, respectivamente na classe dos Dāsas, Tīrthas, Brahmas e Ānandas. Irmão Sūrya insiste em assinar os documentos da escola preparatória externa (responsável pelo estabelecimento de núcleos religiosos, ou ashrams) como pertencente à classe dos Dāsas, mostrando, deste modo, o seu vínculo e pertencimento às duas dimensões da instituição:  (1) a religiosa, preliminar e preparatória, caracterizada pelas práticas ritualísticas, oficiadas pelos instrutores religiosos; e (2) a sintrópica, caracterizada pela internalização de todo o ritual, oficiado, nesse caso, unicamente, pelo Espírito presente em nosso coração.

Em sentido próprio da dimensão espiritual da instituição, segundo irmão Sūrya, só avança para além de Dāsa quem nasceu casto e assim permaneceu por toda a sua vida. O título de Ānanda de Subramanya, por exemplo, seria antes uma cortesia, um reconhecimento externo da comunidade, que fruto de uma iniciação conferida pelos Mestres do Mandalam3. E é por isto que ele prefere não reconhecer os outros títulos, com os quais, por vezes, é lembrado por alguns. Ele defende que os demais níveis da instituição interna, espiritualista e laica, são exclusivos, em princípio, para aqueles brahmacharyes desde o nascimento. 

Foi no contexto do decorrer destes acontecimentos que Irmão Sūrya viveu e atuou como um Dāsa e, ao fazê-lo, estabeleceu as bases da práxis sintrópica do Śuddha Yoga, que caracteriza o Śuddha Sabhā Atma, bem como o seu funcionamento harmônico e em sintonia e sincronicidade com a estrutura religiosa e, até mesmo, sectária dos distintos ashrams. Estes representam grupos de distintos matizes, que mantêm um funcionamento mais ou menos independente, uns dos outros, compondo, deste modo, a instituição externa do Śuddha Dharma Mandalam. Ao estabelecer o Dia de Ação de Graças para todos os Ashrams associados à Grande Síntese, Irmão Sūrya revelou o forte elo da espiritualidade pura e laica do Śuddha Sabhā Ātma e dos seus membros com os ideais religiosos contemplados pelos vários ashrams.

N O T A S

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas, apresentado no final do Prefácio.

(2) Anos mais tarde, em 28 de março de 2010, irmão Sūrya renovaria o nosso vínculo com o Śuddha Sabhā Ātma, estabelecido no antigo Ashram Ātma, com uma pequena cerimônia de consagração da nossa residência, constituindo-a como um guru-kula (núcleo familiar de ensino). O capítulo IX, intitulado "Guru-kula: o núcleo familiar e a Filosofia do Coração na práxis", procura ilustrar o processo de constituição deste núcleo de estudos avançados, sobre filosofia, espiritualidade e a arte e a ciência da meditação. O fogo do conhecimento é transmitido por contágio, da mesma forma que a chama de uma vela acende outra. A base dos guru-kulas é esta energia ígnea de amor universal que se irradia do exemplo e que, no coração, se designa como śraddhā.

(3) Em sua nota de esclarecimento sobre a procedência dos manuscritos originais da Bhagavad Gītā, publicada pelo Śuddha Dharma Mandalam em 1917 e traduzida para o inglês em 1939, Haydée Touriño Wilmer, a tradutora para o português, prefere interpretar que o Swami Subramanya, apesar de viúvo (sua esposa, Lakshmi Ammal, faleceu em 1884), teria sido formalmente admitido na Ordem dos Anandas. Segundo a tradutora a iniciação teria ocorrido durante o Maha-Yajna celebrado no período da Lua Cheia, em 30 de abril de 1923. (2002, 31)


Rio de Janeiro, 06.06.20.
(Atualizado em 01.06.23)

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