A disciplina do puro (śuddha) Śraddhā Yoga, resgatado por Krishna na Bhagavad Gītā, manifesta-se como resposta ao chamado cósmico para cultivarmos śraddhā --a energia e o vigor distintamente humano que floresce em nós, levando-nos a nos trans-humanizar, sublimando a nossa própria personalidade e identidade e nos colocando em sincronicidade com o ritmo do universo. Este cultivo inicia ao despertarmos na madrugada, quando o Dhyāna Mantra "Haṃsa", que pulsa em nossa respiração, nos convida à escuta atenta (bhāvana namaḥ!) à voz silenciosa de Ṛta -- esse fogo interior que se manifesta como um reconhecimento imediato da realidade sintrópica.
Neste estado de presença plena, o prāṇa -- aquele sopro sagrado que a Kaṭha Upaniṣad revela como ponte entre o manifesto e o imanifesto - transfigura-se: cada inspiração ("haṃ") torna-se receptáculo da Brahma-Śakti, enquanto cada expiração ("sa") transforma-se em expressão pura de śraddhā - não a devoção a um ser, mas a percepção da lei formativa que organiza os átomos e as galáxias. Desse ritmo primordial nasce o autêntico "bom-senso" (bhāvana) - a percepção direta (pratibhā) que estremece nossa essência ao desvelar a tessitura sintrópica da existência em cada instante do dia1.
Assim, o Haṃsa transcende sua forma de mantra para tornar-se a própria alquimia da existência - onde jñāna (conhecimento), karma (ação impecável) e bhakti (ardor devocional e entrega incondicional) se fundem em śraddhā (o amoroso e intuitivo sentimento da verdade que é simultaneamente visão e pulsação de Ṛta), dissolvendo as fronteiras entre o contemplação e cotidiano.
Krishna, como avatar, não é o alvo, mas a encarnação mesma deste princípio - o Śraddhā Yoga em sua forma pessoal-impessoal. Uma vida modulada por esse ritmo revela, na prática, como todas as coisas convergem sob a mesma Lei. Nessa sintonia, cada ato torna-se yajña, e a respiração, o altar onde o pessoal se sutiliza e converge, assintoticamente, para o transcendente, para o impessoal e ilimitado.
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Assim, quando o amanhecer nos convida à prática meditativa através do Dhyāna Mantra Haṃsa, não iniciamos um ritual, mas damos continuidade àquele mesmo que transforma cada respiração em altar e cada instante em oportunidade de convergência para o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Ao disciplinar a mente, conduzindo-a a este estado de serenidade, possibilitamos que o seu funcionamento se dê em consonância com o fogo ardente do altruísmo natural e biológico. Ao libertá-la dos dogmas e crenças que ditam leis morais, abrimos espaço para a compreensão sintrópica da diversidade ética entre as culturas. Isto nos possibilita agir no mundo e interagir com todos os seres dando precedência a Śreyas (anseios altruístas) sobre Preyas (anseios passionais), de tal modo que a força do espírito possa se revelar na matéria, fazendo de cada uma de nossas ações uma obra de arte. Ao atendermos o convite interior para zelarmos por todas as nossas relações, tornamo-nos guardiões dos ambientes (kṣetra), interiores (dharma-kṣetra) e exteriores (kuru-kṣetra), sob a nossa esfera de influência. E assim, aos poucos, a vida toda vai se revelando uma profunda meditação, onde até o que víamos como caos torna-se nota na sinfonia de Ṛta.
A Essência do Ancestral Śraddhā Yoga
(Dhyāna, Naiṣkarmya-siddhi e Bhāvana)
1. A meditação (dhyāna). No silêncio de cada dia que amanhece, logo ao acordamos (antes das 06h00) e antes mesmo de abrir os olhos, devemos fazer uma saudação inicial e refletir sobre o propósito a ser vivido, reservando para os outros o direito de serem como são; e para nós, o dever de sermos cada dia melhor. Em seguida, após a higiene pessoal, podemos realizar os nossos estudos sobre a ciênca sagrada e meditar no Ser Imutável (Ātman), concentrados no Ājñā Chakra, o ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, onde floresce a consciência sintrópica.
2. A práxis sintrópica (karma-phala-tyāga). Ao longo do dia, devemos nos dedicar, cheios de alegria espiritual e confiança, aos afazeres que a vida nos apresentar. Devemos exercitar, o dia todo, o poder de agir pelo coração (naiṣkarmya-siddhi), com motivos puros e o ego inativo, em śuddha prāṇāyāma, transformando a vida toda em uma experiência sagrada. Na Bhagavad Gītā, "karma-phala-tyāga" é frequentemente compreendida como "renúncia aos frutos da ação". "Karma" refere-se à ação; "phala" aos frutos ou resultados dessa ação; e "tyāga" à renúncia. Assim, "karma-phala-tyāga" implica realizarmos nossas ações sem apego aos resultados, aceitando-os com equanimidade, reconhecendo que estão além do nosso controle. Ao renunciarmos aos frutos de nossas ações, libertamo-nos dos grilhões do ego, transcendendo os desejos e apegos que nos prendem ao sofrimento. Agimos então de forma desinteressada, motivados pelo ardor do coração (śraddhā), em harmonia com a lei do equilíbrio cósmico (Ṛta), e não pelo desejo de ganhos pessoais. Ao nos desapegarmos dos resultados, nossa mente se purifica, a paz interior floresce e nos tornamos capazes de tratar as pessoas como se já fossem tudo o que podem vir a ser, ajudando-as, deste modo, a se tornarem aquilo que são capazes de ser (Goethe).
3. A escuta (bhāvana namaḥ!) do sentimento sintrópico (śraddhā), que se origina do Ser. Durante o dia todo, devemos exercitar a escuta e a entrega à vontade cósmica, expressa pela metáfora simbólica complexa, "comer a metade, andar o dobro, sorrir o triplo e amar incondicionalmente e sem medida", que nos convida para a práxis sintrópica. Por meio de śraddhā, a energia divina em nós, forjamos uma vontade altruísta, capaz de nos conduzir à verdade e à vitória sobre as nossas paixões inferiores. Ao nos deitar (idealmente antes das 22h), devemos realizar a aferição do nosso progresso no atendimento da Grande Lei (Ṛta), passando em revista o dia vivido e programando o novo dia conforme o nosso entendimento renovado de: (1) bhāvana, enquanto escuta de Ṛta; (2) śraddhā, enquanto expressão de naiṣkarmya-siddhi, ou do sentimento e da práxis despertada por Ṛta; e (3) dhyāna, enquanto experiência de unificação com a fonte de onde se origina Ṛta.
4. Em síntese, por meio da tríplice disciplina do Ancestral Śraddhā Yoga, fundada na meditação matinal, na atenção plena à práxis sintrópica do momento presente e na aferição, ao final de cada dia, da escuta da Grande Lei (Ṛta), com a compreensão de que cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo, aprofundamos o nosso mergulho no oceano infinito do Ser, deixando-nos morrer n'Ele pela noite para renascer D'Ele em cada novo amanhecer. E assim, aos poucos, vamos transformando a nossa vida toda em uma profunda meditação.
Dinacaryā:
a disciplina sintrópica (caryā) diária (dina)
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Dinacaryā: cresça por meio daquilo que você passa. Espiritualidade é ter a vida como o maior guru. |
De que valem as prescrições inflexíveis de quaisquer disciplinas religiosas, quando se alcançou o imo do coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que nos dita o ritmo próprio e sagrado da nossa respiração? A partir do momento em que podemos afirmar, com convicção, "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação", não há mais lugar para as rígidas disciplinas externas. Ao vivermos em sintonia com a sinergia universal, abraçando a vida sintrópica e reconhecendo a dança sagrada do Tempo em meio à entropia existencial/espacial do presente, a vida se transforma em uma profunda e sagrada meditação. A disciplina do Ser floresce como expressão do nosso altruísmo biológico inato, entrelaçada à nossa rotina diária de sintonia fina entre mente e coração, onde reside o sagrado sentimento sintrópico. Esse ajuste, que coloca o amor universal em ação, transmuta, gradualmente (ver abaixo um testemunho), as energias entrópicas e materiais que nutrem os sentidos e a mente, suprindo o corpo com a energia vital do Prāṇa. Este é o sentido do Dhyāna Mantra “Haṃsa”.
“Haṃsa” simboliza o processo de individuação do Ser. Literalmente, a expressão “Haṃ-sa” significa “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”. O termo “Haṃsa” significa “cisne” e representa o Espírito (Ātman), ou seja, "o fogo ardente do coração" ou "a presença da paz e do amor em ação". O Dhyāna Mantra traz implícito o entendimento de que devemos renunciar (saṃnyāsa) a todo alimento e estímulo, recebido pelos cinco sentidos e pela mente, caracterizado pelo descontrole ou pela violência. Ele representa um convite para que nos consagremos (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúsculo desafio que a vida nos apresenta uma oportunidade de disciplina interior (tapas), silêncio do ego (o yajña da naiṣkarmya) e doação de si mesmo (dāna).
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Ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra. |
Preparação para a Prática de Meditação
Como prática preparatória para a realização da meditação que se inicia no silêncio da madrugada e se integra aos nossos afazeres ao longo do dia, podemos entoar ou ouvir invocações como:
- "Guru Strotram", um hino da tradição védica que expressa reverência aos Mestres;
- "Oração do Amanhecer", uma prece da Ordem Franciscana que celebra a conexão com o sagrado; e
- "Svatantra Mantra", tema central deste texto e do nosso livro-blog em geral.
Todas estas invocações nos aproximam da realidade sagrada e nos conectam com a energia cósmica (Brahma-Śākti), despertando em nós, gradualmente, śraddhā - o fogo e o ardor do coração e o poder de colocar o amor em ação. Como uma chama interior, śraddhā nos impulsiona a agir com compaixão e a vivenciar a verdade do ditado popular: "O amor é o jeito que dá jeito em tudo o que não tem jeito. Não importa a pergunta, o amor é a resposta."
Guru Strotram
O Guru Stotram é um hino místico entoado para renovar a nossa śraddhā, expressando gratidão e reverência aos grandes mestres espirituais. Considerados personificações da sabedoria sagrada, os mestres espirituais nos inspiram a viver em harmonia com a lei sintrópica do equilíbrio cósmico, Ṛta. Ao entoarmos este hino, purificamos e acalmamos a mente, conectando-nos com śraddhā, a energia espiritual que nos prepara para a prática de meditação silenciosa.
Oração do Amanhecer
Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bênçãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos.
Svatantra Mantra
(O mantra da genuína liberdade,
autonomia e autossuficiência da nossa essência espiritual)
Irradiando amor e alegria a todos os seres,
repitamos, mentalmente, a sagrada sílaba OṂ, por três vezes;
e entoemos o Svatantra Mantra por alguns minutos:
OṂ OṂ OṂ
OṂ haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā
OṂ eu sou o Eu Sou, saudações à Nossa Senhora do Yoga, Śrī Yoga Devī
O Dhyāna Mantra Haṃsa
(Ājñā Chakra: ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala)
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
O Dhyāna Mantra “Haṃsa” oculta-se no ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra (ver figura), o assento da energia divina e sintrópica (Brahma Śakti), onde ressoa a nossa própria respiração2.
OṂ OṂ OṂ
Inspiro (haṃ-) paz e harmonia (Brahma Śakti), expiro (so-) amor (Śraddhā)
Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração;
quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. . .
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou o fogo ardente do coração
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou a presença da paz e do amor em ação
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ todo ressentimento transformo em compaixão e compreensão
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
OṂ tudo é sagrado; tudo é de natureza sagrada; tudo é necessário
Finalizada a entoação realizemos a saudação final e
sigamos para a nossa prática de meditação.
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OṂ OṂ OṂ
OṂ TAT SAT
Namastê! Namastê! Namastê!
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(1) Os seis períodos do dia. Cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo. Seis potências arquetípicas dirigem o corpo humano, presidindo sobre cada um dos seis períodos de quatro horas, ou dez ghaṭīkās (1 ghaṭīkā = 24 min) que formam um dia:
02h - 06h: Brahma-kāla. Período regido pela figura arquetípica Sarasvatī, o aspecto feminino de Brahmā, o criador do mundo. Período propício à prática de meditação silenciosa, ao estudo da ciência sagrada, à busca da retidão e à interpretação e controle dos sonhos e das demais manifestações do inconsciente.
06h - 10h: Śrī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Lakṣmī, o aspecto feminino de Viṣṇu, que representa a força sintrópica de preservação do universo. Período propício ao entendimento da meditação como meditação na ação, ou seja, como maestria sobre as ações e boa gestão de todas as atividades cotidianas.
10h - 14h: Jyeṣṭhā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Jyeṣṭhā, a antítese de Lakṣmī e, portanto, a sua outra metade. Jyeṣṭhā representa o obstáculo entrópico que encontra, nesse período do dia, o momento mais propício para se instalar como um vício sutil e difícil de se perceber. Expressa-se nos seres humanos como a ausência da força e energia representada por Lakṣmī. Indica-nos, portanto, que é neste período que devemos estar mais atentos para exercitar a capacidade sintrópica de subliminar a influência sutil de antigos maus hábitos, impedindo-os de voltarem a se manifestar. Compreender a influência de Jyeṣṭhā significa obter o dom de se tornar incansável e, portanto, invencível.
14h - 18h: Pārvatī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Pārvatī, o aspecto feminino de Śiva, que representa a força entrópica de transformação e destruição do universo. Período propício ao exercício de convergência para a meta por meio da austeridade do corpo e da mente e do jejum de pensamentos, palavras e atos.
18h - 22h: Durgā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Durgā, a divindade identificada como um aspecto de Pārvatī e também de Śraddhā, invocada por Arjuna no Mahābhārata, no instante imediatamente anterior ao início do episódio da Bhagavad Gītā. Período propício à programação do dia seguinte e ao esforço sintrópico de fixação dos hábitos, valores e conceitos relativos ao processo de convergência para a meta.
22h - 02h: Bhadra-kāla. Período regido pela figura arquetípica Bhadrakālī, a divindade identificada com o auspicioso poder feminino do Senhor Tempo. Período dedicado à entrega de Si Mesmo aos braços do Senhor Tempo que, sob a forma do Sono, promove o processamento e a fixação na memória de todo o aprendizado do dia que se passou.
Prof. Rubens, texto e conteudo de valor, perfeito.
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