2024-07-10

A Disciplina Sintrópica do Ancestral Śraddhā Yoga


A disciplina do puro (śuddha) Śraddhā Yoga, resgatado por Krishna na Bhagavad Gītā, manifesta-se como resposta ao chamado cósmico para cultivarmos śraddhā --a energia e o vigor distintamente humano que floresce em nós, levando-nos a nos trans-humanizar, sublimando a nossa própria personalidade e identidade e nos colocando em sincronicidade com o ritmo do universo. Este cultivo inicia ao despertarmos na madrugada, quando o Dhyāna Mantra "Haṃsa", que pulsa em nossa respiração, nos convida à escuta atenta (bhāvana nama!) à voz silenciosa de Ṛta -- esse fogo interior que se manifesta como um reconhecimento imediato da realidade sintrópica.

Neste estado de presença plena, o prāṇa -- aquele sopro sagrado que a Kaṭha Upaniṣad revela como ponte entre o manifesto e o imanifesto - transfigura-se: cada inspiração ("haṃ") torna-se receptáculo da Brahma-Śakti, enquanto cada expiração ("sa") transforma-se em expressão pura de śraddhā - não a devoção a um ser, mas a percepção da lei formativa que organiza os átomos e as galáxias. Desse ritmo primordial nasce o autêntico "bom-senso" (bhāvana) - a percepção direta (pratibhā) que estremece nossa essência ao desvelar a tessitura sintrópica da existência em cada instante do dia1.

Assim, o Haṃsa transcende sua forma de mantra para tornar-se a própria alquimia da existência - onde jñāna (conhecimento), karma (ação impecável) e bhakti (ardor devocional e entrega incondicional) se fundem em śraddhā (o amoroso e intuitivo sentimento da verdade que é simultaneamente visão e pulsação de Ṛta), dissolvendo as fronteiras entre o contemplação e cotidiano. 

Krishna, como avatar, não é o alvo, mas a encarnação mesma deste princípio - o Śraddhā Yoga em sua forma pessoal-impessoal. Uma vida modulada por esse ritmo revela, na prática, como todas as coisas convergem sob a mesma Lei. Nessa sintonia, cada ato torna-se yajña, e a respiração, o altar onde o pessoal se sutiliza e converge, assintoticamente, para o transcendente, para o impessoal e ilimitado.

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Assim, quando o amanhecer nos convida à prática meditativa através do Dhyāna Mantra Haṃsa, não iniciamos um ritual, mas damos continuidade àquele mesmo que transforma cada respiração em altar e cada instante em oportunidade de convergência para o Absoluto (Brahma-sāmīpya)Ao disciplinar a mente, conduzindo-a a este estado de serenidade, possibilitamos que o seu funcionamento se dê em consonância com o fogo ardente do altruísmo natural e biológico. Ao libertá-la dos dogmas e crenças que ditam leis morais, abrimos espaço para a compreensão sintrópica da diversidade ética entre as culturas. Isto nos possibilita agir no mundo e interagir com todos os seres dando precedência a Śreyas (anseios altruístas) sobre Preyas (anseios passionais), de tal modo que a força do espírito possa se revelar na matéria, fazendo de cada uma de nossas ações uma obra de arte. Ao atendermos o convite interior para zelarmos por todas as nossas relações, tornamo-nos guardiões dos ambientes (kṣetra), interiores (dharma-kṣetra) e exteriores (kuru-kṣetra), sob a nossa esfera de influência. E assim, aos poucos, a vida toda vai se revelando uma profunda meditação, onde até o que víamos como caos torna-se nota na sinfonia de Ṛta.


A Essência do Ancestral Śraddhā Yoga
(Dhyāna, Naiṣkarmya-siddhi e Bhāvana)

1. A meditação (dhyāna)No silêncio de cada dia que amanhece, logo ao acordamos (antes das 06h00) e antes mesmo de abrir os olhos, devemos fazer uma saudação inicial e refletir sobre o propósito a ser vivido, reservando para os outros o direito de serem como são; e para nós, o dever de sermos cada dia melhor. Em seguida, após a higiene pessoal, podemos realizar os nossos estudos sobre a ciênca sagrada e meditar no Ser Imutável (Ātman), concentrados no Ājñā Chakra, o ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, onde floresce a consciência sintrópica.

2. A práxis sintrópica (karma-phala-tyāga). Ao longo do dia, devemos nos dedicar, cheios de alegria espiritual e confiança, aos afazeres que a vida nos apresentar. Devemos exercitar, o dia todo, o poder de agir pelo coração (naiṣkarmya-siddhi), com motivos puros e o ego inativo, em śuddha prāṇāyāma, transformando a vida toda em uma experiência sagrada. Na Bhagavad Gītā, "karma-phala-tyāga" é frequentemente compreendida como "renúncia aos frutos da ação". "Karma" refere-se à ação; "phala" aos frutos ou resultados dessa ação; e "tyāga" à renúncia. Assim, "karma-phala-tyāga" implica realizarmos nossas ações sem apego aos resultados, aceitando-os com equanimidade, reconhecendo que estão além do nosso controle. Ao renunciarmos aos frutos de nossas ações, libertamo-nos dos grilhões do ego, transcendendo os desejos e apegos que nos prendem ao sofrimento. Agimos então de forma desinteressada, motivados pelo ardor do coração (śraddhā), em harmonia com a lei do equilíbrio cósmico (Ṛta), e não pelo desejo de ganhos pessoais. Ao nos desapegarmos dos resultados, nossa mente se purifica, a paz interior floresce e nos tornamos capazes de tratar as pessoas como se já fossem tudo o que podem vir a ser, ajudando-as, deste modo, a se tornarem aquilo que são capazes de ser (Goethe). 

3. A escuta (bhāvana namaḥ!) do sentimento sintrópico (śraddhā), que se origina do Ser. Durante o dia todo, devemos exercitar a escuta e a entrega à vontade cósmica, expressa pela metáfora simbólica complexa, "comer a metadeandar o dobrosorrir o triplo e amar incondicionalmente e sem medida", que nos convida para a práxis sintrópica. Por meio de śraddhā, a energia divina em nós, forjamos uma vontade altruísta, capaz de nos conduzir à verdade e à vitória sobre as nossas paixões inferiores. Ao nos deitar (idealmente antes das 22h), devemos realizar a aferição do nosso progresso no atendimento da Grande Lei (Ṛta), passando em revista o dia vivido e programando o novo dia conforme o nosso entendimento renovado de: (1) bhāvana, enquanto escuta de Ṛta; (2) śraddhā, enquanto expressão de naiṣkarmya-siddhi, ou do sentimento e da práxis despertada por Ṛta; e (3) dhyāna, enquanto experiência de unificação com a fonte de onde se origina Ṛta. 

4. Em síntese, por meio da tríplice disciplina do Ancestral Śraddhā Yoga, fundada na meditação matinal, na atenção plena à práxis sintrópica do momento presente e na aferição, ao final de cada dia, da escuta da Grande Lei (Ṛta), com a compreensão de que cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo, aprofundamos o nosso mergulho no oceano infinito do Ser, deixando-nos morrer n'Ele pela noite para renascer D'Ele em cada novo amanhecer. E assim, aos poucos, vamos transformando a nossa vida toda em uma profunda meditação.

Dinacaryā: 
a disciplina sintrópica (caryā) diária (dina)

Dinacaryā: cresça por meio daquilo que você passa.
Espiritualidade é ter a vida como o maior guru. 
De que valem as prescrições inflexíveis de quaisquer disciplinas religiosas, quando se alcançou o imo do coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que nos dita o ritmo próprio e sagrado da nossa respiração? A partir do momento em que podemos afirmar, com convicção, "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação", não há mais lugar para as rígidas disciplinas externas. Ao vivermos em sintonia com a sinergia universal, abraçando a vida sintrópica e reconhecendo a dança sagrada do Tempo em meio à entropia existencial/espacial do presente, a vida se transforma em uma profunda e sagrada meditação. A disciplina do Ser floresce como expressão do nosso altruísmo biológico inato, entrelaçada à nossa rotina diária de sintonia fina entre mente e coração, onde reside o sagrado sentimento sintrópico. Esse ajuste, que coloca o amor universal em ação, transmuta, gradualmente (ver abaixo um testemunho), as energias entrópicas e materiais que nutrem os sentidos e a mente, suprindo o corpo com a energia vital do Prāṇa. Este é o sentido do Dhyāna Mantra “Haṃsa”

“Haṃsa” simboliza o processo de individuação do Ser. Literalmente, a expressão “Haṃ-sa” significa “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”. O termo “Haṃsa” significa “cisne” e representa o Espírito (Ātman), ou seja, "o fogo ardente do coração" ou "a presença da paz e do amor em ação". O Dhyāna Mantra traz implícito o entendimento de que devemos renunciar (saṃnyāsa) a todo alimento e estímulo, recebido pelos cinco sentidos e pela mente, caracterizado pelo descontrole ou pela violência. Ele representa um convite para que nos consagremos (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúsculo desafio que a vida nos apresenta uma oportunidade de disciplina interior (tapas), silêncio do ego (o yajña da naiṣkarmya) e doação de si mesmo (dāna).


Ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra.
Quando nos identificamos com o fogo ardente do coração, nos tornamos uma expressão de paz e amor e experimentamos a vida toda como uma manifestação do sagrado. A partir daí, passamos a irradiar algo desta consciência de sagrado (Īśvara), presente no alento vital, que nos converte em instrumentos, veículos, deste mesmo despertar nos demais. Avançamos no processo de sincronização da nossa respiração na exata medida em que nos identificamos com a Consciência Universal e, consequentemente, com todos aqueles que compartilham desse mesmo ambiente e espírito, ou "campo" (kṣetra), de paz e amor. A respiração sincronizada é a prova, em qualquer ambiente, do poder de uma mente purificada.

Preparação para a Prática de Meditação

Como prática preparatória para a realização da meditação que se inicia no silêncio da madrugada e se integra aos nossos afazeres ao longo do dia, podemos entoar ou ouvir invocações como:
  • "Guru Strotram", um hino da tradição védica que expressa reverência aos Mestres; 
  • "Oração do Amanhecer", uma prece da Ordem Franciscana que celebra a conexão com o sagrado; e
  •  "Svatantra Mantra", tema central deste texto e do nosso livro-blog em geral. 
Todas estas invocações nos aproximam da realidade sagrada e nos conectam com a energia  cósmica (Brahma-Śākti), despertando em nós, gradualmente, śraddhā - o fogo e o ardor do coração e o poder de colocar o amor em ação. Como uma chama interior, śraddhā nos impulsiona a agir com compaixão e a vivenciar a verdade do ditado popular: "O amor é o jeito que dá jeito em tudo o que não tem jeito. Não importa a pergunta, o amor é a resposta." 

Guru Strotram

O Guru Stotram é um hino místico entoado para renovar a nossa śraddhā, expressando gratidão e reverência aos grandes mestres espirituais. Considerados personificações da sabedoria sagrada, os mestres espirituais nos inspiram a viver em harmonia com a lei sintrópica do equilíbrio cósmico, Ṛta. Ao entoarmos este hino, purificamos e acalmamos a mente, conectando-nos com śraddhā, a energia espiritual que nos prepara para a prática de meditação silenciosa.


Oração do Amanhecer

Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bênçãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos.

Svatantra Mantra
(O mantra da genuína liberdade,
autonomia e autossuficiência da nossa essência espiritual)

Irradiando amor e alegria a todos os seres,
repitamos, mentalmente, a sagrada sílaba OṂpor três vezes;
e entoemos o Svatantra Mantra por alguns minutos:

OṂ  OṂ   O
OṂ haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā
OṂ eu sou o Eu Sou, saudações à Nossa Senhora do Yoga, Śrī Yoga Devī

O Dhyāna Mantra Haṃsa
(Ājñā Chakra: ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala)
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .

O Dhyāna Mantra “Haṃsa” oculta-se no ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra (ver figura), o assento da energia divina e sintrópica (Brahma Śakti), onde ressoa a nossa própria respiração2.

OṂ   OṂ   OṂ
Inspiro (haṃ-) paz e harmonia (Brahma Śakti), expiro (so-) amor (Śraddhā)
Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração;
quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. .  .
Haṃ-so-haṃ. . . 
OṂ eu sou o fogo ardente do coração
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou a presença da paz e do amor em ação
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ todo ressentimento transformo em compaixão e compreensão
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
OṂ tudo é sagrado; tudo é de natureza sagrada; tudo é necessário

Finalizada a entoação realizemos a saudação final e
sigamos para a nossa prática de meditação.

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* *
* * *
OṂ OṂ OṂ

OṂ   TAT   SAT

Namastê! Namastê! Namastê!

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(1) Os seis períodos do dia. Cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo. Seis potências arquetípicas dirigem o corpo humano, presidindo sobre cada um dos seis períodos de quatro horas, ou dez ghaṭīkās (1 ghaṭīkā = 24 min) que formam um dia:
02h - 06h: Brahma-kāla. Período regido pela figura arquetípica Sarasvatī, o aspecto feminino de Brahmā, o criador do mundo. Período propício à prática de meditação silenciosa, ao estudo da ciência sagrada, à busca da retidão e à interpretação e controle dos sonhos e das demais manifestações do inconsciente. 
06h - 10h: Śrī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Lakṣmī, o aspecto feminino de Viṣṇu, que representa a força sintrópica de preservação do universo. Período propício ao entendimento da meditação como meditação na ação, ou seja, como maestria sobre as ações e boa gestão de todas as atividades cotidianas. 
10h - 14h: Jyeṣṭhā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Jyeṣṭhā, a antítese de Lakṣmī e, portanto, a sua outra metade. Jyeṣṭhā representa o obstáculo entrópico que encontra, nesse período do dia, o momento mais propício para se instalar como um vício sutil e difícil de se perceber. Expressa-se nos seres humanos como a ausência da força e energia representada por Lakṣmī. Indica-nos, portanto, que é neste período que devemos estar mais atentos para exercitar a capacidade sintrópica de subliminar a influência sutil de antigos maus hábitos, impedindo-os de voltarem a se manifestar. Compreender a influência de Jyeṣṭhā significa obter o dom de se tornar incansável e, portanto, invencível
14h - 18h: Pārvatī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Pārvatī, o aspecto feminino de Śiva, que representa a força entrópica de transformação e destruição do universo. Período propício ao exercício de convergência para a meta por meio da austeridade do corpo e da mente e do jejum de pensamentos, palavras e atos.
18h - 22h: Durgā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Durgā, a divindade identificada como um aspecto de Pārvatī e também de Śraddhā, invocada por Arjuna no Mahābhārata, no instante imediatamente anterior ao início do episódio da Bhagavad Gītā. Período propício à programação do dia seguinte e ao esforço sintrópico de fixação dos hábitos, valores e conceitos relativos ao processo de convergência para a meta. 
22h - 02h: Bhadra-kāla. Período regido pela figura arquetípica Bhadrakālī, a divindade identificada com o auspicioso poder feminino do Senhor Tempo. Período dedicado à entrega de Si Mesmo aos braços do Senhor Tempo que, sob a forma do Sono, promove o processamento e a fixação na memória de todo o aprendizado do dia que se passou.


Rio de Janeiro, 12.06.22.
(Atualizado em 06.04.25

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