2021-10-28

Dinacaryā: cresça por meio daquilo que você passa

Espiritualidade é ter a vida como o maior guru. 

Dinacaryā (दिनचर्या): 
a disciplina sintrópica (caryā) diária (dina)

De que valem as prescrições inflexíveis de quaisquer disciplinas religiosas, quando se alcançou o imo do coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que nos dita o ritmo próprio e sagrado da nossa respiração? A partir do momento em que podemos afirmar, com convicção, "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação", não há mais lugar para as rígidas disciplinas externas. A disciplina do Ser torna-se uma exteriorização do nosso próprio sentimento sintrópico ou altruísmo biológico, bem como da nossa rotina diária de ajuste e sintonia fina da mente com o sagrado no coração. Tal ajuste sintrópico, realizado com vistas a se colocar o amor universal em ação, promove a gradual transmutação das energias entrópicas e materiais que alimentam os cinco sentidos e a mente ao longo do dia, suprindo o corpo de Prāṇa (energia vital). Este é o sentido do Dhyāna Mantra “Haṃsa”

“Haṃsa” simboliza o processo de individuação do Ser. Literalmente, a expressão “Haṃ-sa” significa “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”. O termo “Haṃsa” significa “cisne” e representa o Espírito (Ātman), ou seja, "o fogo ardente do coração" ou "a presença da paz e do amor em ação". O Dhyāna Mantra traz implícito o entendimento de que devemos renunciar (saṃnyāsa) a todo alimento e estímulo, recebido pelos cinco sentidos e pela mente, caracterizado pelo descontrole ou pela violência. Ele representa um convite para que nos consagremos (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúsculo desafio que a vida nos apresenta uma oportunidade de disciplina interior (tapas), silêncio do ego (o yajña da naiṣkarmya ), e doação de si mesmo (dāna).


Ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra.
Quando nos identificamos com o fogo ardente do coração, nos tornamos uma expressão de paz e amor e experimentamos a vida toda como uma manifestação do sagrado. A partir daí, passamos a irradiar algo desta consciência de sagrado (Īśvara), presente no alento vital, que nos converte em instrumentos, veículos, deste mesmo despertar nos demais. Na exata medida em que nos identificamos com a Consciência Universal tem início este processo de sincronização da respiração nos demais, inflamando e contagiando, parcialmente, a todos aqueles que compartilham desse mesmo ambiente e espírito, ou "campo" (kṣetra), de paz e amor. A respiração sincronizada é a prova, em qualquer ambiente, desse processo contagiante, induzido pelo poder de uma mente purificada.

O Dhyāna Mantra Haṃsa
(Ājñā Chakra: ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala)
हंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहं
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .

O Dhyāna Mantra “Haṃsa” oculta-se no ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra (ver figura), o assento da energia divina e sintrópica (Brahma Śakti), onde ressoa a nossa própria respiração. Daí esse mantra ser enaltecido no interior do Svatantra Mantra, "OṂ haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā" que é parte da disciplina diária de Yoga Sāndhya (Yoga do Amanhecer) descrita nos parágrafos 169 a 195 da seção chamada Ātma Snāna (Purificação pela Água para a realização do Espírito) do Sanātana Dharma Deepika, Volume I (Madras, 1917; pp. 107 - 113) e pode ser traduzido como se segue: OṂ, eu sou o Eu Sou, saudações a Śrī Yoga Devī. Ele nos traz a consciência de que o estado de meditação permanece latente em cada minúscula respiração. Despertamos a consciência de que esta prática permanece conosco o dia todo, em cada minúscula respiração, quando aprendemos a reservar alguns minutos do nosso dia a meditar, com os olhos suavemente fechados, em silêncio e em postura de prece, no alento vital que nos unifica ao cosmos...

OṂ   OṂ   OṂ
Inspiro (haṃ-) paz e harmonia (Brahma Śakti), expiro (so-) amor (Śraddhā)
Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração;
quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. .  .
Haṃ-so-haṃ. . . 
OṂ eu sou o fogo ardente do coração
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou a presença da paz e do amor em ação
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ todo ressentimento transformo em compaixão e compreensão
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
OṂ tudo é sagrado; tudo é de natureza sagrada; tudo é necessário

*
***
OṂ OṂ OṂ

OṂ   TAT   SAT

Namastê! Namastê! Namastê!
***************************

A disciplina sintrópica (śuddha yoga)

1. A meditação (dhyāna). Antes de abrir os olhos, a saudação matinal e a reflexão sobre o propósito a ser vivido, reservando para os outros o direito de serem como são; e para nós, o dever de sermos cada dia melhor. Em seguida (antes das 06h00), a higiene pessoal, a meditação, o estudo da ciência sagrada e a reafirmação do compromisso diário de: comer a metadeandar o dobrosorrir o triplo e amar incondicionalmente e sem medida.

2. A práxis sintrópica (karma-phala-tyāga). Durante o dia todo, exercitar o poder de agir pelo coração (naiṣkarmyasiddhi), com motivos puros e o ego inativo, em śuddha prāṇāyāma, transformando a vida toda em uma experiência sagrada.

3. A escuta (bhāvana namaḥ!) do sentimento sintrópico (śraddhā). Ao se deitar (até as 22h), realizar a aferição do progresso, passando em revista o dia vivido e programando o novo dia. Em seguida, mergulhar no oceano infinito que é Deus e deixar-se morrer em Deus para renascer D'Ele ao amanhecer. 

Os seis períodos do dia

A disciplina sintrópica do śuddha yogi resume-se ao atendimento do chamado do universo para que despertemos de madrugada e nos dediquemos ao sagrado o tempo todo, em conformidade com as necessidades de cada um dos seis períodos do dia. Cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo. Seis divindades arquetípicas dirigem o corpo humano, presidindo sobre cada um dos seis períodos de dez ghaṭīkās (1 ghaṭīkā = 24 min; 10 ghaṭīkās = 4 horas) que formam um dia:
02h - 06h: Brahma-kāla. Período regido pela figura arquetípica Sarasvatī, o aspecto feminino de Brahmā, o criador do mundo. Período propício à prática de meditação silenciosa, ao estudo da ciência sagrada, à busca da retidão e à interpretação e controle dos sonhos e das demais manifestações do inconsciente. 
06h - 10h: Śrī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Lakṣmī, o aspecto feminino de Viṣṇu, que representa a força sintrópica de preservação do universo. Período propício ao entendimento da meditação como meditação na ação, ou seja, como maestria sobre as ações e boa gestão de todas as atividades cotidianas. 
10h - 14h: Jyeṣṭhā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Jyeṣṭhā, a antítese de Lakṣmī e, portanto, a sua outra metade. Jyeṣṭhā representa o obstáculo entrópico que encontra, nesse período do dia, o momento mais propício para se instalar como um vício sutil e difícil de se perceber. Expressa-se nos seres humanos como a ausência da força e energia representada por Lakṣmī. Indica-nos, portanto, que é neste período que devemos estar mais atentos para impedir a manifestação de antigos maus hábitos, que nos afastam da práxis sintrópica. Superar a influência de Jyeṣṭhā significa obter o dom de se tornar incansável e, portanto, invencível
14h - 18h: Pārvatī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Pārvatī, o aspecto feminino de Śiva, que representa a força entrópica de transformação e destruição do universo. Período propício ao exercício de convergência para a meta por meio da austeridade do corpo e da mente e do jejum de pensamentos, palavras e atos.
18h - 22h: Durgā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Durgā, a divindade identificada como um aspecto de Pārvatī e também de Śraddhā, invocada por Arjuna no Mahābhārata, no instante imediatamente anterior ao início do episódio da Bhagavad Gītā. Período propício à programação do dia seguinte e ao esforço sintrópico de fixação dos hábitos, valores e conceitos relativos ao processo de convergência para a meta. 
22h - 02h: Bhadra-kāla. Período regido pela figura arquetípica Bhadrakālī, a divindade identificada com o auspicioso poder feminino do Senhor Tempo. Período dedicado à entrega de Si Mesmo aos braços do Senhor Tempo que, sob a forma do Sono, promove o processamento e a fixação na memória de todo o aprendizado do dia que se passou.
Um Testemunho

Em 19.02.16, uma Quarta-feira de Cinzas, enquanto me preparava, psicologicamente, para enfrentar o tratamento do câncer recém-diagnosticado, experimentei, por alguns momentos, na prática, deste estado sintrópico, de unidade, enquanto  fazia uso do mantra "OM haṃ-sa so‘haṃ" (OM, Eu Sou em mim), que é parte do  do Svatantra Mantra. Vi como cada instante da vida nos dá a oportunidade de aprender a enfrentar com  destemor, gratidão e confiança todos os desafios que o dia-a-dia nos apresenta. Fechar os olhos e observar a mente não era diferente de observar a mente de olhos abertos, enquanto esta observa e experimenta do mundo, parecia ouvir de alguma fonte espiritual. Percebemos isto mais facilmente quando relaxamos os olhos  e contemplamos o céu e as estrelas, sugeria esta voz interior. O mundo podia ser experimentado como um espelho, que reflete a nós mesmos: a nossa mente se revela para nós quando nos damos conta de que ela não apreende o mundo e sim as nossas representações do mundo. Quando percebo que só consigo experimentar o mundo como uma representação mental, vejo diluirem-se as fronteiras entre o observador e a coisa observada, entre o sujeito e o objeto -- estes se tornam uma e a mesma coisa. E daí surge a visão do infinito.

Por alguns segundos vivi algo que só posso descrever tomando como ilustração aquele efeito de reprodução infinita que acontece quando tiramos uma selfie na frente de um espelho. Pude experimentar, por algumas frações de segundo, do estado de "Haṃ-sa, haṃ-sa" ("Eu Sou Ele, Eu Sou Ele"), caracterizado pela sublimação do egoísmo (saṃnyāsa) e comunhão com o sagrado (tyāga). Estava no lago da consciência cósmica do Eu Sou (Haṃ, eu sou; saḥ, isto – o Ser), onde os dois pássaros da metáfora védica unificam-se no cisne, "haṃsa", revelando-nos o infinito que somos nós mesmos. Meu alento vital era uma manifestação da entropia sintrópica que nos coloca em movimento a cada novo dia. Eu era um com a fonte de onde emana a Amṛita, ou água da vida. Estava experimentando a respiração como um processo sintrópico que promovia a minha identificação com o Ser  no coração – “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo), ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)”. Em função das regras gramaticais do sânscrito (sandhi: saḥ + ahaṃ = so 'haṃ), quando a expressão “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)” é repetida em sequência, o que ouvimos é “... haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ...” tal qual temos no processo da respiração. Daí também o mantra do cisne Haṃsa  se chamar “Haṃ so”.

 


Rio de Janeiro, 28.10.21.
(Atualizado em 21.12.23)

Nenhum comentário:

Postar um comentário