Espiritualidade é ter a vida como o maior guru. |
Dinacaryā (दिनचर्या):
a disciplina sintrópica (caryā) diária (dina)
De que valem as prescrições inflexíveis de quaisquer disciplinas religiosas, quando se alcançou o imo do coração, onde habita a Consciência Sintrópica Universal, que nos dita o ritmo próprio e sagrado da nossa respiração? A partir do momento em que podemos afirmar, com convicção, "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação", não há mais lugar para as rígidas disciplinas externas. A disciplina do Ser torna-se uma exteriorização do nosso próprio sentimento sintrópico ou altruísmo biológico, bem como da nossa rotina diária de ajuste e sintonia fina da mente com o sagrado no coração. Tal ajuste sintrópico, realizado com vistas a se colocar o amor universal em ação, promove a gradual transmutação das energias entrópicas e materiais que alimentam os cinco sentidos e a mente ao longo do dia, suprindo o corpo de Prāṇa (energia vital). Este é o sentido do Dhyāna Mantra “Haṃsa”.
“Haṃsa” simboliza o processo de individuação do Ser. Literalmente, a expressão “Haṃ-sa” significa “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”. O termo “Haṃsa” significa “cisne” e representa o Espírito (Ātman), ou seja, "o fogo ardente do coração" ou "a presença da paz e do amor em ação". O Dhyāna Mantra traz implícito o entendimento de que devemos renunciar (saṃnyāsa) a todo alimento e estímulo, recebido pelos cinco sentidos e pela mente, caracterizado pelo descontrole ou pela violência. Ele representa um convite para que nos consagremos (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúsculo desafio que a vida nos apresenta uma oportunidade de disciplina interior (tapas), silêncio do ego (o yajña da naiṣkarmya ), e doação de si mesmo (dāna).
Ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra. |
O Dhyāna Mantra Haṃsa
(Ājñā Chakra: ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala)
हंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहंसोऽहं
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
O Dhyāna Mantra “Haṃsa” oculta-se no ponto de encontro de Iḍā e Piṅgala, no Ājñā Chakra (ver figura), o assento da energia divina e sintrópica (Brahma Śakti), onde ressoa a nossa própria respiração. Daí esse mantra ser enaltecido no interior do Svatantra Mantra, "OṂ haṃsas so'haṃ yogeśvarīṃ hrīṃ svāhā" que é parte da disciplina diária de Yoga Sāndhya (Yoga do Amanhecer) descrita nos parágrafos 169 a 195 da seção chamada Ātma Snāna (Purificação pela Água para a realização do Espírito) do Sanātana Dharma Deepika, Volume I (Madras, 1917; pp. 107 - 113) e pode ser traduzido como se segue: OṂ, eu sou o Eu Sou, saudações a Śrī Yoga Devī. Ele nos traz a consciência de que o estado de meditação permanece latente em cada minúscula respiração. Despertamos a consciência de que esta prática permanece conosco o dia todo, em cada minúscula respiração, quando aprendemos a reservar alguns minutos do nosso dia a meditar, com os olhos suavemente fechados, em silêncio e em postura de prece, no alento vital que nos unifica ao cosmos...
OṂ OṂ OṂ
Inspiro (haṃ-) paz e harmonia (Brahma Śakti), expiro (so-) amor (Śraddhā)
Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração;
quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman. . .
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou o fogo ardente do coração
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ eu sou a presença da paz e do amor em ação
Haṃ-so-haṃ. . .
OṂ todo ressentimento transformo em compaixão e compreensão
Haṃ-so-haṃ-so-haṃ. . .
OṂ tudo é sagrado; tudo é de natureza sagrada; tudo é necessário
*
***
OṂ OṂ OṂ
OṂ TAT SAT
Namastê! Namastê! Namastê!
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A disciplina sintrópica (śuddha yoga)
(“primeiro ser; depois fazer; e só então, dizer” – Lao Tzu)
1. A meditação (dhyāna). Antes de abrir os olhos, a saudação matinal e a reflexão sobre o propósito a ser vivido, reservando para os outros o direito de serem como são; e para nós, o dever de sermos cada dia melhor. Em seguida (antes das 06h00), a higiene pessoal, a meditação, o estudo da ciência sagrada e a reafirmação do compromisso diário de: comer a metade, andar o dobro, sorrir o triplo e amar incondicionalmente e sem medida.
2. A práxis sintrópica (karma-phala-tyāga). Durante o dia todo, exercitar o poder de agir pelo coração (naiṣkarmyasiddhi), com motivos puros e o ego inativo, em śuddha prāṇāyāma, transformando a vida toda em uma experiência sagrada.
3. A escuta (bhāvana namaḥ!) do sentimento sintrópico (śraddhā). Ao se deitar (até as 22h), realizar a aferição do progresso, passando em revista o dia vivido e programando o novo dia. Em seguida, mergulhar no oceano infinito que é Deus e deixar-se morrer em Deus para renascer D'Ele ao amanhecer.
Os seis períodos do dia
A disciplina sintrópica do śuddha yogi resume-se ao atendimento do chamado do universo para que despertemos de madrugada e nos dediquemos ao sagrado o tempo todo, em conformidade com as necessidades de cada um dos seis períodos do dia. Cada novo dia simboliza um ciclo completo do processo cósmico de criação e dissolução do universo. Seis divindades arquetípicas dirigem o corpo humano, presidindo sobre cada um dos seis períodos de dez ghaṭīkās (1 ghaṭīkā = 24 min; 10 ghaṭīkās = 4 horas) que formam um dia:
02h - 06h: Brahma-kāla. Período regido pela figura arquetípica Sarasvatī, o aspecto feminino de Brahmā, o criador do mundo. Período propício à prática de meditação silenciosa, ao estudo da ciência sagrada, à busca da retidão e à interpretação e controle dos sonhos e das demais manifestações do inconsciente.
06h - 10h: Śrī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Lakṣmī, o aspecto feminino de Viṣṇu, que representa a força sintrópica de preservação do universo. Período propício ao entendimento da meditação como meditação na ação, ou seja, como maestria sobre as ações e boa gestão de todas as atividades cotidianas.
10h - 14h: Jyeṣṭhā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Jyeṣṭhā, a antítese de Lakṣmī e, portanto, a sua outra metade. Jyeṣṭhā representa o obstáculo entrópico que encontra, nesse período do dia, o momento mais propício para se instalar como um vício sutil e difícil de se perceber. Expressa-se nos seres humanos como a ausência da força e energia representada por Lakṣmī. Indica-nos, portanto, que é neste período que devemos estar mais atentos para impedir a manifestação de antigos maus hábitos, que nos afastam da práxis sintrópica. Superar a influência de Jyeṣṭhā significa obter o dom de se tornar incansável e, portanto, invencível.
14h - 18h: Pārvatī-kāla. Período regido pela figura arquetípica Pārvatī, o aspecto feminino de Śiva, que representa a força entrópica de transformação e destruição do universo. Período propício ao exercício de convergência para a meta por meio da austeridade do corpo e da mente e do jejum de pensamentos, palavras e atos.
18h - 22h: Durgā-kāla. Período regido pela figura arquetípica Durgā, a divindade identificada como um aspecto de Pārvatī e também de Śraddhā, invocada por Arjuna no Mahābhārata, no instante imediatamente anterior ao início do episódio da Bhagavad Gītā. Período propício à programação do dia seguinte e ao esforço sintrópico de fixação dos hábitos, valores e conceitos relativos ao processo de convergência para a meta.
22h - 02h: Bhadra-kāla. Período regido pela figura arquetípica Bhadrakālī, a divindade identificada com o auspicioso poder feminino do Senhor Tempo. Período dedicado à entrega de Si Mesmo aos braços do Senhor Tempo que, sob a forma do Sono, promove o processamento e a fixação na memória de todo o aprendizado do dia que se passou.
Um Testemunho
Por alguns segundos vivi algo que só posso descrever tomando como ilustração aquele efeito de reprodução infinita que acontece quando tiramos uma selfie na frente de um espelho. Pude experimentar, por algumas frações de segundo, do estado de "Haṃ-sa, haṃ-sa" ("Eu Sou Ele, Eu Sou Ele"), caracterizado pela sublimação do egoísmo (saṃnyāsa) e comunhão com o sagrado (tyāga). Estava no lago da consciência cósmica do Eu Sou (Haṃ, eu sou; saḥ, isto – o Ser), onde os dois pássaros da metáfora védica unificam-se no cisne, "haṃsa", revelando-nos o infinito que somos nós mesmos. Meu alento vital era uma manifestação da entropia sintrópica que nos coloca em movimento a cada novo dia. Eu era um com a fonte de onde emana a Amṛita, ou água da vida. Estava experimentando a respiração como um processo sintrópico que promovia a minha identificação com o Ser no coração – “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo), ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)”. Em função das regras gramaticais do sânscrito (sandhi: saḥ + ahaṃ = so 'haṃ), quando a expressão “ahaṃ (eu sou) saḥ (aquilo)” é repetida em sequência, o que ouvimos é “... haṃ-so-haṃ-so-haṃ-so-haṃ...” tal qual temos no processo da respiração. Daí também o mantra do cisne Haṃsa se chamar “Haṃ so”.
SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: No silêncio deste dia que amanhece . . .
Rio de Janeiro, 28.10.21.
(Atualizado em 21.12.23)
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