A Bhagavad1 Gītā2 desenvolve a arte e a ciência da meditação sob a forma de um diálogo que tem como espinha dorsal o conceito de
śraddhā – o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Śraddhā representa o Princípio da Confiança e da Prudência expresso no
cogito cartesiano. Representa a razão esclarecida pelo
coração tranquilo e pelo
sorriso interior que orientam e aferem a conduta do herói em sua jornada. Denota, portanto, o processo racional e dialético para se alcançar o "
estado de testemunha", este entendido como o resultado do encontro com as verdades últimas e o sagrado revelado nas Escrituras, fruto da superação da vontade e da fé exterior.
Há sete virtudes principais segundo os teólogos da Igreja Católica: Prudência, Justiça, Temperança, Coragem, Fé, Esperança e Compaixão. Como nos alerta o Senhor Buda3, a fé sem prudência não conduz à realização final. Do mesmo modo, nos alerta a ciência moderna, a fé sem prudência está em contradição com a razão. A única fé digna deste nome, portanto, é a fé da razão esclarecida, ou seja, aquela fé interior, ou fé-em-si-mesmo, que se traduz como um sentimento e que contém como subprodutos todas as sete virtudes principais definidas pela Igreja. Esta fé-em-si-mesmo, que está em consonância com os requisitos do Senhor Buda, corresponde ao que, na Bhagavad Gītā4, se denomina como śraddhā – aquele poder que empodera tudo mais, possibilitando-nos compreender a vida toda como sagrada.
Śraddhā opera como o termômetro espiritual da faculdade da vontade. Marca característica daqueles que já experimentam daquilo que antes era mero objeto de crença, śraddhā representa não a espera, mas o estado de encontro, ou descoberta da essência do real, de onde se origina a certeza interior. Enquanto a fé caracteriza os devotos (bhaktas) que, embora creiam no sagrado, o ignoram; śraddhā, a o sentimento de convicção interior, ou fé em si mesmo, ao se constituir como fonte de certeza, caracteriza aqueles (bhaktas ou não) cujo saber funda-se tanto na ciência, como na experiência mística com o sagrado. Não é por outra razão que é incorreto traduzir śraddhā no texto da Bhagavad Gītā conforme o sentido teológico designado pelo termo “fé”, embora esta continue sendo a opção utilizada pelos tradutores desavisados.
Shankara, Hegel, Marx e a Bhagavad Gītā
A Bhagavad Gītā vale-se do conceito de śraddhā como meio para expressar a síntese da tese védica da via da ação (karma-mārga) e da antítese das Upaniṣades da via da não-ação (jñāna-mārga, ou a via EXCLUSIVA do conhecimento). A novidade da Bhagavad Gītā, em relação à tradição védica, está precisamente neste argumento em torno da via da síntese do yoga (BhG 4.1). O nome em sânscrito para esta síntese dos opostos, que permite à Arjuna superar a sua ilusão inicial e compreender distintos pontos de vista sobre a filosofia do SER, é
jñāna-karma-samuccaya-vāda, ou seja, a teoria sobre a síntese (sam-uccaya) dialética (vāda) entre a via da não-ação (ou do conhecimento, jñāna) e a via da ação (karma). Esta teoria admite como axioma fundamental, ou premissa metafísica, a Unidade do Absoluto, simbolizada nos três componentes do
Praṇava OM: A-U-M. Esta trindade deixa-se representar por distintos ternos, como: (1) Ser, (2) não-Ser e (3) relação de vir-a-Ser; (1) Espírito, (2) Matéria e (3) Vida; (1) Tese, (2) Antítese, e (3) Síntese; (1) Nascimento, (2) Morte e (3) Vida; (1) Positivo, (2) Negativo e (3) Neutro; (1) Presente, (2) Passado e (3) Futuro; (1) Rajas (natureza explosiva), (2) Tamas (natureza inerte) e (3) Sattva (natureza harmoniosa); (1) Kriya (atividade), (2) Icchā (vontade), e (3) Jñāna (conhecimento) e assim por diante.
O método dialético de Hegel, leitor e crítico ferrenho da Bhagavad Gītā, expressa algo da tese jñāna-karma-samuccaya-vāda. A relação de interdependência entre os três constituintes da Trindade A-U-M se dá em torno da ideia de que cada um deles representa a negação da diferença entre os outros dois, em sentido bem próximo ao pretendido pela dialética hegeliana. O exemplo clássico que traduz a dialética hegeliana pode ser colocado nos seguintes termos: a (1) semente é a negação da (2) planta que desabrocha e, ainda assim, ambos (3) se relacionam e se identificam, pois a planta surge da semente tanto quanto a semente, da planta. Isto significa dizer que todas as oposições existem apenas de forma relativa. A Terra pode ser considerada grande, se comparada à Lua, e pequena, se comparada ao sol. Do mesmo modo, o Praṇava AUM, símbolo por excelência do sagrado, representa a negação da diferença entre o múltiplo, percebido em Saṁsāra (universo fenomenológico) e o absoluto experimentado em Nirvāṇa. A Fenomenologia do Espírito (1807) de Hegel segue um esquema próximo a este presente na Bhagavad Gītā, texto que ele desqualifica, embora pareça imitar. A diferença é que, enquanto a Bhagavad Gītā sustenta a realidade e concretude do mundo, Hegel privilegia um entendimento de um tipo de subjetividade que dissolve a concretude do mundo. Mais tarde, Marx, ao se dar conta deste abandono da matéria por parte de Hegel, inverte os termos da fenomenologia hegeliana, corrigindo, deste modo o seu "erro epistemológico" e dando ênfase à concretude e realidade do mundo objetivo. Marx reinaugura, deste modo, a dialética do concreto, introduzida originariamente por Krishna na Bhagavad Gītā, quando este introduz Arjuna a via de síntese dos opostos, o yoga que se expressa como jñāna-karma-samuccaya-vāda.
A jñāna-karma-samuccaya-vāda, uma das teses centrais da Bhagavad Gītā, é quase ignorada pelos especialistas contemporâneos em função das críticas de Shankara (séc. VIII), como se sabe, um ardoroso defensor da tese rival, conhecida como “Kevala-Sāṁkhya” – a via exclusiva do conhecimento. O comentário de Shankara à Bhagavad Gītā nada mais representa que uma estratégia desesperada de desqualificar o “Śuddha Sāṁkhya”, representado pela jñāna-karma-samuccaya-vāda. Esta discussão aparece, em especial, nos argumentos que Shankara apresenta na glosa ao verso BhG 18.17, quando procura minimizar o fato de Krishna estar pedindo à Arjuna para não renunciar à via da ação. Séculos se passaram e nem mesmo a crítica de Ramanuja (séc. XII) ao Kevala-Sāṁkhya de Shankara conseguiu resgatar plenamente o Śuddha Sāṁkhya. Somente nas últimas décadas, com os primeiros autores do incipiente neo-Vedanta, como Yogananda, Vivekananda, Aurobindo, Tilak, Gandhi, S. Radhakrishnan e, principalmente, Bhagavan Das, surgiram os primeiros movimentos nesse sentido. Como se sabe, Shankara rejeitava a jñāna-karma-samuccaya-vāda porque se filiava ao Kevala Sāṁkhya, que vê o mundo como ilusório (māyā). A ação no campo do ilusório, obviamente, não pode ter valor. O Śuddha Samkhya, entretanto, embora admita que as nossas percepções sejam enganosas, insiste na realidade do mundo e, consequentemente, na importância da práxis.
Se a Bhagavad Gītā tem início com Arjuna insistindo em renunciar à via da ação e afirmando o seu desejo de seguir o Kevala Sāṁkhya, ao longo do diálogo, Krishna o convence da superioridade do Suddha Sāṁkhya, expresso na jñāna-karma-samuccaya-vāda. Ilusão (māyā), ensina a Bhagavad Gītā, é acreditar que os opostos sejam mutuamente exclusivos, quando, em verdade, são complementares. Daí a convocação de Krishna para que Arjuna se engaje na luta dialética do concreto, com o ego (ahaṅkāra) sob o domínio e controle do coração (Ātman).
Quando executada a partir do coração (Ātman), desapegadamente e com ardoroso amor (śraddhā), toda ação torna-se, de certa forma, não-ação, pois quem se consagra (tyāga) ao Ser, deixa de ser agente, torna-se instrumento. Logo, submeter-se ao Ser que reside no coração (Ātman, Krishna, etc.) é o que nos libera para agir, pois nesse caso, agimos como se não estivéssemos agindo, livres dos impulsos da nossa personalidade egoica.
Arjuna, o príncipe guerreiro em seu processo externo (pravṛtti), e Arjuna, o discípulo em busca de auto-realização (nivṛtti), alcançam a unificação por meio da disciplina de síntese (yoga), que nada mais significa que estabelecer-se no coração (Ātman) para, a partir daí, agir pleno de amor. E é a revelação de Krishna para Arjuna deste puro (śuddha) yoga que se entende como jñāna-karma-samuccaya-vāda na Bhagavad Gītā.
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