2023-10-16

Uma Reflexão sobre o “Manifesto Śuddha” de Bhagavān Nārada (B)


A Bhagavad Gītā como uma Crítica às Estruturas Tradicionais

Bhagavad Gītā contempla o diálogo entre Krishna e Arjuna, que ocorre no campo de batalha, instantes antes do início do confronto. Arjuna incorpora os valores morais da época e está em crise de consciência. Krishna representa a instância renovadora e/ou transgressora destes mesmos valores.  O texto foge ao padrão convencional da época, em que os sacerdotes eram os porta-vozes e intérpretes do sagrado. Em vez disso, um guerreiro e seu “cocheiro” estão no centro deste diálogo, rompendo com o entendimento sobre como a hierarquia de castas deveria organizar a sociedade. Além do mais, a instrução espiritual de Krishna a Arjuna não se dá no interior de qualquer recinto sagrado, āśrama (ashram, ou espécie de monastério) ou mandir (templo), mas no campo de batalha, poucos minutos antes do início do mais terrível combate já ocorrido no subcontinente indiano.

Krishna oferece a Arjuna conselhos valiosos, enfatizando a importância de śraddhā, o ardor do coração, o compassivo sentimento sintrópico e a fé interior. Isso contrasta com a abordagem tradicional de seguir incondicionalmente a autoridade da tradição guru-śiṣya paramparā, à qual a maioria dos indianos se apegava. Dentre os trabalhos disponíveis para se compreender a Bhagavad Gītā à luz do Śuddha Yoga, encontra-se o livro The Heart-Doctrine of Sri Bhagavad Gita & Its Message, de Vasudeva Row (1938), que destaca a centralidade de śraddhā, posteriormente demonstrada na tese, "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), onde esta se revela como a chave e a condição necessária e suficiente para se alcançar a realização espiritual. De forma breve, o argumento central da tese gira em torno da premissa de que śraddhā não se deixa traduzir por "fé", como querem muitos, ainda quando a fé protestante possa ser entendida como um "sentimento de confiança" [na Bíblia; na palavra de Deus]. A fé católica, contudo, jamais é entendida como algo que possa ser "reduzido" a um "mero" sentimento. Sem querer entrar nesta disputa entre católicos e protestantes, o que importa aqui é enfatizar a insuficência da fé para caracterizar śraddhā. Tanto a fé católica como a fé protestante apresentam como característica fundamental o entendimento de que a fé (fides) é sempre fé em algo exterior ao sujeito, representando aquilo em que se acredita mesmo na ausência de motivos racionais para tal. Vale dizer, enquanto a expressão “tenho fé nas verdades exteriores propostas como dogmas pela Igreja” exemplifica um dos usos do termo fides (fé), a proposição “experimento do sentimento sintrópico de confiança e certeza interior, decorrente de uma convicção íntima", denota um dos usos em que se emprega o termo śraddhā. Em outras palavras, por representar os mesmos Princípios da Confiança e da Prudência, expressos no cogito cartesiano, śraddhā prescinde da necessidade de conformação a qualquer verdade apriorística, imposta como dogma.

Vasudeva Row vale-se em seu estudo da recensão da Bhagavad Gītā de 745 versos, publicada em 1917 pelo Paṇḍit K. T. Srinivasācharyar. Esta recensão do texto foi extraída da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, de Haṃsa Yogi, que teve o seu primeiro volume (conhecido como "Upodhgāta") publicado em 1922, também pelo Paṇḍit K. T. Srinivasācharyar. De acordo com a epistemologia śuddha sāṃkhya, exposta por Haṃsa Yogi e discutida por Vasudeva Row, as faculdades de que dispomos para alcançar a Brahma-prāpti são quatro: (1) faculdade dos sentidos (indriyas); (2) mente emocional (manas); (3) faculdade cognitiva (buddhi ou jñāna), e (4) faculdade sintrópica (yoga). Todo ato sempre envolve, em alguma medida, a conjunção de seus três constituintes: (1) o conhecimento dos meios, (2) o anseio de realização e (3) o esforço na prática. Vasudeva Row explica que quando o ATO em questão se refere à realização de Brahman, seus constituintes refletem a natureza última desta realização do sagrado, sendo designados, respectivamente, de (1) Brahma Jñāna, (2) Brahma Bhakti e (3) Brahma Karma. Deste modo, os nossos esforços de convergência para a realização espiritual dão-se em termos de: (1) conhecimento (jñāna), (2) desejo (icchā, bhakti) e (3) ação (karma). Eles culminam no sentimento sintrópico (śraddhā) de equilíbrio (yoga), expresso em cada ato pleno (kriyā) do śuddha yogi que alcançou, tanto o contato com o Espírito em si mesmo, como a identificação progressiva com o seu aspecto transcendente.

Esta nova recensão da Bhagavad Gītā, editada pelo Śuddha Dharma Maṇḍalam, constitui um roteiro simples e claro dos meios discutidos por Haṃsa Yogi para se alcançar a Brahma-prāpti (realização espiritual). Quatro expressões verbais designam a sequência natural do nosso funcionamento – (1) jānāti (ele/ela sabe); (2) icchati (ele/ela deseja/anseia); (3) yatate (ele/ela se esforça); e (4) prāpnoti (ele/ela materializa). Cada um desses eixos é tratado, separadamente, nos quatro grupos de seis capítulos (Ṣaṭka) desta recensão de 26 capítulos (24 capítulos mais a Introdução e a Conclusão), a saber:  (1) Jñāna Ṣaṭka, (2) Bhakti Ṣaṭka, (3) Karma Ṣaṭka, e (4) Yoga Ṣaṭka. Ela favorece o entendimento do texto a partir da jñāna-karma-samuccaya-vāda, desacreditada por Śaṅkarācārya, embora reconhecida pelo comentarista anterior a ele, que sofre a sua crítica. Decorre daí, talvez, que esta recensão tivesse sido tão mal-recebida no continente indiano.

A Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā e a jñāna-karma-samuccaya-vāda

Krishna trata na Bhagavad Gītā de dois aspectos da ação humana, entendidos até então, principalmente no seio do Vedānta, como mutuamente exclusivos: pravṛtti (movimento de exteriorização, ou de ação concreta na realidade objetiva) e nivṛtti (subjetivo; movimento de interiorização – ou de “não-ação” –, decorrente do entendimento e controle de todo o processo de formação da vontade).  De acordo com Haṃsa Yogi, pravṛtti e nivṛtti compõem as duas asas necessárias ao voo rumo ao sagrado, os dois eixos do gradual processo de síntese dialética de toda a atividade humana, sugerido no princípio conhecido como jñāna-karma-samuccaya-vāda, que discutiremos a seguir.

O comentário-guia de Haṃsa Yogi à Bhagavad Gītā, Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā,  baseia-se no princípio que afirma a ideia de síntese dialética entre as vias da ação e da não ação, conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda e que Ādi Śaṅkarācārya critica em sua Gītā Bhāṣya. Este princípio era defendido pelo comentarista que o precedeu e que, possivelmente, era simpatizante do Śuddha Yoga. Quase nada se pode afirmar a este respeito, uma vez que todos os manuscritos dos comentários (bhāṣyas) à Bhagavad Gītā anteriores a Śaṅkarācārya se perderam. Por isto, inclusive, também não se consegue datar muitos textos do Śuddha Yoga, supostamente antiquíssimos, mas que somente recentemente vieram a público, como é o caso da própria Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi. Este texto está organizado tematicamente, tendo como eixo principal a Invocação do Hino a Durgā, que, no Mahābhārata ocorre no momento imediatamente anterior ao que se convencionou chamar como o início da Bhagavad Gītā. Durgā é o aspecto da Devī que aparece como a deidade Śraddhā no Ṛgveda. Invocar a Durgā é invocar o poder de se encher de śraddhā. Um dos maiores méritos desta recensão de Haṃsa Yogi, extraído da coletânea de textos śuddhas conhecida como Khaṇḍa Rahasya, está em sua cuidadosa estruturação que torna explícita a tripla natureza do śuddha sāṃkhya, que fundamenta a jñāna-karma-samuccaya-vāda por oposição ao kevala sāṃkhya (via exclusiva do conhecimento), que a rejeita e que constitui o Advaita Vedānta.

Uma vez que o comentário de Śaṅkarācārya é o mais antigo que chegou até nós, pouco se saberia desta linhagem que se baseia na jñāna-karma-samuccaya-vāda, não fosse pelo Khaṇḍa Rahasya e, consequentemente, pela própria Gītā Bhāṣya oferecida por Haṃsa Yogi. O texto de Haṃsa Yogi orienta-se pela centralidade do conceito de śraddhā na Bhagavad Gītā para expressar a síntese da tese védica da via da ação (karma-mārga) e da antítese da Upaniṣades da via da não-ação (jñāna-mārga, ou a via EXCLUSIVA do conhecimento). A novidade da Bhagavad Gītā em relação à tradição védica está precisamente neste argumento em torno da via da síntese do śuddha yoga, que permite à Arjuna superar a sua ilusão inicial e compreender distintos pontos de vista sobre a filosofia do SER. De acordo com o comentário da Bhagavad Gītā de Haṃsa Yogi, que apresenta os seus versos reordenados tematicamente em vinte e seis capítulos, o tema principal do texto é a realização de Brahman por meio da via de convergência sintrópica para o Absoluto (Brahma-sāmīpya) conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda, ou seja, a via de síntese (sam-uccaya) dialética (vāda) entre a via da não-ação (ou do conhecimento, jñāna) e a via da ação (karma). Para muitos, a novidade do texto da Bhagavad Gītā está nesta sua tese implícita sobre a natureza complementar e não contraditória entre as duas grandes seções dos Vedas – o karma-kāṇḍa, ou seção ritualística, e o jñāna-kāṇḍa, ou seção do conhecimento especulativo. A expressão jñāna-karma-samuccaya-vāda – expressa esta tese (vāda) sobre a via (mārga) de síntese (samuccaya) que unifica (1) a via da ação (karma-mārga), fundada na maestria ritualística da tradição bramânica e (2) a via da “não ação”, ou do conhecimento (jñāna-mārga), fundada na superação do estado de ignorância do ser por meio exclusivo do pensamento especulativo. Krishna, deste modo, estaria se valendo do conceito de śraddhā para dar assento à síntese (upāsana) destas duas vias, até então compreendidas como mutuamente exclusivas. Śaṅkarācārya, obviamente, não concorda com esse entendimento, uma vez que entende o mundo como ilusório (māyā). E a ação no campo do ilusório não pode ter valor real. Por isto ele procura minimizar o fato de Krishna pedir à Arjuna para não renunciar à via da ação. 

Séculos se passaram e nem mesmo a crítica de Rāmānuja (séc. XII) à Śaṅkarācārya conseguiu resgatar plenamente a jñāna-karma-samuccaya-vāda. Somente nas últimas décadas, com os primeiros autores do incipiente neo-Vedānta, como Yogananda, Vivekananda, Aurobindo, Tilak, Gandhi, S. Radhakrishnan e, principalmente, Bhagavān Das, surgiram os primeiros movimentos nesse sentido. Se a Bhagavad Gītā tem início com Arjuna insistindo em renunciar à via da ação e afirmando o seu desejo de seguir a via do conhecimento (jñāna-mārga), ou kevala sāṃkhya, ela se encerra com ele acatando o ponto de vista de Krishna de que seria possível seguir pela via de síntese sintrópica conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda, que atende a ambos os caminhos.

Considerações Finais

O "Manifesto Śuddha" de Bhagavān Nārada, como vimos, está associado à figura misteriosa de Haṃsa Yogi, cuja linhagem remonta, pelo menos, ao século V, quando o budismo exercia forte influência no pensamento indiano. Os Śuddha Ācāryas R. Vasudeva Row, Dr. Sir. S Subramania Iyer e Paṇḍit K. T. Srinivasācharyar, oriundos, respectivamente, dos três principais sistemas filosóficos do vedānta: Dvaita (dualismo de Madhva), Advaita (não-dualismo de Śaṅkarācārya) e Viśiṣṭādvaita (não-dualismo qualificado de Rāmānuja), quando articulam o desenvolvimento do Mandalam em torno do "Manifesto Śuddha", desempenham um papel fundamental na promoção da cultura sintrópica, que se funda na jñāna-karma-samuccaya-vāda, em conformidade com o exposto na Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā de Haṃsa Yogi.
 
Em suma, estes Śuddha Ācāryas nos oferecem uma visão única e desafiadora do contemporâneo neo-Vedānta e da sua influência na nascente cultura sintrópica, sintetizando as vias da ação e do conhecimento e enfatizando a importância de śraddhā, o sentimento sintrópico, nesse processo. O “Manifesto Śuddha”, a um só tempo, legitima a Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, que se funda na jñāna-karma-samuccaya-vāda, e rejeita a Gītā Bhāṣya de Śaṅkarācārya, que a descarta. O Śuddha Yoga, que o Manifesto defende ser a própria essência da Bhagavad Gītā, desafia a autoridade exclusiva das tradições guru-śiṣya paramparā e, consequentemente, a legitimidade da hierarquia de castas. A visão que o Śuddha Yoga nos oferece resgata a riqueza das ancestrais expressões sânscritas, bem como permite uma compreensão mais profunda e aberta dos desafios sintrópicos deste mundo contemporâneo, em que a realização espiritual está ao alcance de todos, independentemente do seu país de origem e da sua posição na sociedade.

Rio de Janeiro, 16.10.23.
(06.11.23)

2 comentários:

  1. Uma leitura desafiadora e também relevante, digna de um filósofo que orienta o caminho do pensamento.
    Há algum tempo, procurava alguma análise sobre Śaṅkarācārya e encontrei através dessa leitura.

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