2025-06-09

Anu Gītā — A Perda do Foco Absoluto, A Sabedoria da Retomada e o Ritmo de Viniyoga

Quando a chama se retrai,
o coração aprende a soprar as brasas:
śraddhā é o fogo que jamais se apaga.
Interlúdio: A Perda do Foco Absoluto

Ao abordar viniyoga como sintonia integral com a luz natural do coração, tocamos o ponto sensível do caminho: aquele em que a conexão com o foco se enfraquece, a luz parece se apagar, e o praticante experimenta a queda silenciosa da escuta interior. É nesse intervalo, onde a śraddhā vacila e a presença se dilui, que a Anu Gītā revela sua importância.

O texto a seguir interpreta esse momento como parte essencial do ritmo da retomada. Assim, antes de avançarmos para upasthāna — o gesto de oferta e reintegração —, deixemo-nos conduzir pela sabedoria da pausa, da ausência e da escuta reacesa. É pela intimidade com o próprio eclipse que o sol interior reaprende a nascer.

SINOPSE

Este artigo retoma o fio invisível entre a Bhagavad Gītā e a Anu Gītā, interpretando a transição da revelação ardente à pedagogia da retomada. Por meio da śraddhā, da respiração e do viniyoga, delineia-se o caminho da restauração interior: do foco absoluto à disciplina viva do Śraddhā Yoga.

2025-06-03

A Meditação como Alento do Ser

Quando a respiração encontra sua origem,
a alma repousa no coração silencioso do real.

Respirar é existir. Mas respirar com consciência é aproximar-se do Ser. A prática do Haṃsa Prāṇāyāma, como apresentada no Śraddhā Yoga, revela que a meditação não começa com o silêncio da mente, mas com a escuta do coração. Meditar, nesse contexto, é abrir-se à amorização universal, designada, tecnicamente, como "bhāvana namaḥ". Em poucas palavras, é disciplinar-se (namaḥ) na escuta do Ser (bhāvana) que nos conduz à realização espiritual. O sopro, então, torna-se comunhão e a vida se transforma em liturgia viva.

O Prāṇāyāma como Três Gestos do Ser

Prāṇaḥ śuddhaḥ satyaḥ dharmaḥ;
“O sopro é pureza, verdade, e dharma.”

No Śraddhā Yoga, o prāṇāyāma é mais que respiração consciente: é liturgia do Ser. Cada ciclo é um gesto completo de amor. Inspirar é acolher o Uno; reter é integrar sua luz; expirar é devolvê-la ao mundo. Esses três gestos — pūraka, kumbhaka, rechaka — formam o corpo respiratório da a bússola interior (śraddhā) que traduz o amor em clareza e ação lúcida (dharma).

No Śraddhā Yoga, o prāṇāyāma se traduz na arte de amar, expressa como Bhāvana Namaḥ — a prática sutil da escuta do alento vital e da entrega (namaḥ) à vibração do amor universal (bhāvana), que depura o ego ao reconhecer a unidade em todas as coisas. Esse cultivo se inicia com a identificação do prāṇāyāma com o Dhyāna Mantra “Haṃsa”, que pulsa em nossa respiração e nos convida à escuta da voz silenciosa do fogo interior — uma presença que se revela como reconhecimento imediato da realidade sintrópica, Ṛta. Ela nos ensina que não basta apenas conhecer a verdade, mas que é preciso vivenciá-la com fervor, desenvolvendo e adaptando métodos específicos para enfrentar cada novo desafio que a vida nos apresenta. 

Śraddhā Yoga: A Ciência e a Arte do Amor em Ação

Há um sentimento inteligente no alento. Uma consciência que pulsa com cada inspiração, que sustenta a vida como uma oferenda invisível, mas presente em tudo. No Śraddhā Yoga, essa inteligência é denominada prāṇa, mas não como mera energia vital — e sim como vibração viva da brahma-śakti, a potência do Ser em movimento. Respirar é dançar com o cosmos.

Essa dança, no entanto, carece de direção. É aí que surge śraddhā, o impulso do coração que reconhece o sentido da vida mesmo antes de formulá-lo. Onde prāṇa é o fluxo, śraddhā é a direção amorosa. Onde prāṇa é o sopro, śraddhā é o ritmo interior que harmoniza sua música. Juntas, essas forças compõem uma ciência sutil e radical: a ciência do amor como ação vital, silenciosa e transformadora.

2025-06-02

O Haṃsa Prāṇāyāma como o Dhyāna Mantra: A Respiração que nos Revela

Respirar não é apenas viver;
é lembrar-se de quem se é.

1. O voo do cisne e a origem da respiração sagrada

Na tradição védica, o Haṃsa — o cisne branco — é símbolo do Ser que atravessa os mundos sem se manchar. Ele é o paramahasa, aquele que distingue o real do irreal, que nada nas águas da dualidade, mas vive da luz da unidade. 

Mais que uma ave mitológica, o haṃsa é um arquétipo do reconhecimento: o momento em que a alma individual (jīva) desperta para sua identidade com o Espírito universal (Ātman).

Quando respiramos com escuta amorosa, ouvimos esse cisne. Ele pousa no lago do coração e canta: haṁ... saḥ... — o som silencioso da respiração viva. Não se trata de uma técnica criada pela mente, mas do dhyāna-mantra, o mantra natural da meditação no Ser. Todo ser vivo o entoa, mesmo sem saber. O haṃsa-mantra é śuddha dhyāna: meditação pura, espontânea e sagrada.

O Haṃsa Prāṇāyāma e o Dharma: A Respiração como Alinhamento Interior


Respirar não é apenas viver.
É alinhar-se à inteligência do cosmos
em cada gesto do alento.

1. Respirar é sintonizar: Haṃsa Prāṇāyāma como meditação sintrópica

No Śraddhā Yoga, o prāṇāyāma não é uma técnica de controle respiratório, mas um rito de alinhamento. Respirar não é apenas manter-se vivo: é participar conscientemente da inteligência que pulsa em tudo.

Essa respiração consciente — descrita na Bhagavad Gītā como oferenda sagrada — alcança sua forma mais pura no Haṃsa Prāṇāyāma: a prática de meditação sintrópica em que o ego é depurado e o alento se consagra ao Ser.

A Síndrome do Impostor e o Teatro da Alma

Karpaṇya-doṣaḥ — a névoa do coração
que anuncia a alvorada da śraddhā.

1. O medo de não ser:
o drama do ego entre svārtha e kārpaṇya-doṣa

“Todo mundo que eu conheço vive a síndrome do impostor.” — disse Jesse Eisenberg. Se até artistas reconhecidos a experimentam, o que dizer dos que trilham o caminho da interioridade?

O Śraddhā Yoga não interpreta essa síndrome como fraqueza, mas como rito iniciático: um limiar entre a ignorância do ego e a humildade da alma.

A sensação de não estar à altura — de ser um personagem disfarçado de si mesmo — é comum àqueles que começam a abandonar as máscaras sem ainda conhecer o rosto por trás delas. Em sânscrito, dois termos nos ajudam a compreender essa travessia: svārtha e kārpaṇya-doṣa.

2025-06-01

A Fábula do Foco e a Escuta Interior

1. A prova do olho do pássaro: o foco como arquétipo

No Ādi Parva (134–135) do Mahābhārata, Dronācārya oferece aos seus discípulos uma lição que se tornaria mítica. Um pássaro de madeira repousa sobre um galho. Os jovens guerreiros, convocados a mirar com o arco, são interrogados pelo mestre. “O que vês?” Alguns veem o pássaro, o galho, a árvore, o céu. Arjuna, porém, responde: “Vejo apenas o olho do pássaro.” Sua flecha atinge o alvo com precisão.

O Som que Respira no Centro


 हंसा हंसा इति आत्मा एव गच्छति।
haṃsā haṃsā iti ātmā eva gacchati
Haṃsa, Haṃsa — assim o Ātman vai e vem.
(Haṃsa Upaniṣad, v. 1)
प्राणो हि जीवनं।
prāṇo hi jīvanam
Pois prāṇa é, de fato, a vida.
(Praśna Upaniṣad 2.4)

Há um som que não nasce do atrito nem da intenção. Ele vibra no âmago do Ser e ecoa em cada sopro de vida. Não é ouvido com os ouvidos, mas com a escuta do coração. Haṃ-saḥ... Haṃ-saḥ... — o cisne interior voa entre inspiração e expiração, trazendo consigo o segredo da meditação viva.

A Alta Performance no Śraddhā Yoga: Do Ego ao Som

Na filosofia sintrópica do Śraddhā Yoga, a expressão “alta performance” não se refere à performance medível por padrões externos, mas à arte de agir em plena consonância com o dharma — a lei do equilíbrio universal (ṛta). Tal performance nasce da sintonia entre manas e buddhi, entre o desejo e a inteligência amorosa, entre o fazer e o ser. Quando a ação se alinha com a sabedoria do coração, ela cessa de ser expressão do ego e se torna gesto do Ser: oferenda, respiração lúcida, arte em estado de verdade.

Assim compreendida, a alta performance é fruto de śraddhā: o ardor luminoso que emana do coração silencioso e que guia o agir. Ela não nasce do esforço de ser perfeito, mas do sentimento intuitivo de ser veículo da perfeição imanente. Como ensina a Bhagavad Gītā (2.50), o verdadeiro yogin é aquele cuja ação se torna arte, cuja prática se transforma em sabedoria, e cujo movimento é guiado pela luz da clareza interior.

2025-05-30

Todo Coração: O Amor Impessoal e a Voz do Ser

Haṁsaḥ śāntiḥ śraddhāyāḥ — que a respiração do Ser
nos conduza sempre ao centro luminoso do coração.

1. Todo Coração — Mayakovsky
e o Gesto Sintrópico

Há em Vladimir Mayakovsky, poeta russo, uma expressão viva da cultura sintrópica que o tropicalismo brasileiro começa a manifestar — uma cultura capaz de harmonizar a sabedoria ancestral de todas as raças, a ciência contemporânea e o impulso ordenativo do Espírito. Mayakovsky dizia ser “todo coração”. Assim como ele, reconheço no símbolo do coração o diapasão mais sutil da sintonia entre justiça social e amor.

2025-05-25

A Meditação Sintrópica e o Foco na Alta Performance Musical: Uma Abordagem que Vai Além da Técnica

Do Foco Técnico ao Foco Vibracional:
A Meditação Sintrópica como
Arte de Escutar o Ser

Dando continuidade ao texto anterior sobre yogyatā e rasa, este novo ensaio explora as diferenças entre mindfulness, hipnose e a meditação sintrópica proposta pelo Śraddhā Yoga. Aqui, o foco não é uma técnica isolada, mas um estado vibracional — resultado de um alinhamento entre intenção, presença e Ser. Em vez de propor fórmulas, o texto aponta um caminho vivo: o do praticante que, guiado por śraddhā, descobre a arte de tocar com o coração em ressonância com o ritmo do real.

2025-05-24

ANEXO 6. Porta de Entrada à Meditação Sintrópica: Uma Leitura Contemplativa do Śraddhā Yoga

Este anexo reúne uma série de reflexões breves e definidoras sobre aspectos essenciais do Śraddhā Yoga, tal como ele se revela na Bhagavad Gītā. Apresentadas em forma de respostas, proposições ou iluminações simbólicas, essas entradas têm valor tanto didático quanto meditativo. Elas não visam substituir o estudo aprofundado dos capítulos anteriores, mas servir como ponto de entrada, de consulta e de reapreciação daquilo que, em última instância, deve ser vivido, não apenas compreendido.

Estrutura do Anexo
  1. O que devo fazer para me conhecer? Krishna revela a Draupadi os Cinco Pilares da Cultura Sintrópica.
  2. O que é o Manifesto Śuddha? Reflexões sobre a mensagem de Bhagavān Nārada.
  3. O que é a Cultura Sintrópica de Paz e Amor? A Bhagavad Gītā como uma expressão da Filosofia Sintrópica e da unidade essencial das religiões.
  4. Qual o papel da Bhāṣyopetā de Haṃsa Yogi na tradição da Bhagavad Gītā? O "pseudo-problema" ocasionado pela publicação deste "comentário-guia".
  5. O que é a prática do Bhāvana? O desenvolvimento do sentimento universal de amor de que todas as coisas surgem do Supremo Espírito, que a tudo compenetra e a tudo sustém em uma ordem constante e em vida eterna.
  6. O que é a ação (karma) à luz dos Seis Deveres Diários? A disciplina que pressupõe a renúncia (samnyāsa) ao fruto das ações e o desligamento de todas as coisas que impedem a consagração de si mesmo à manifestação da Vontade Suprema.
  7. O que é Sākṣī? A Metáfora da Pessoa Humana e do Espírito Universal que a Anima.
  8. O que é Meditação Sintrópica? A meditação que tem início no silencioso recolhimento das madrugadas e se prolonga pelo dia como expressão de uma contínua meditação na ação, com atenção plena e foco no aspecto de sagrado de cada minúscula experiência que a vida nos reserva.
sarvaṁ karma akhilaṁ pārtha jñāne parisamāpyate
“Ó Pārtha, toda ação culmina no conhecimento.” (BhG 4.33)


Rio de Janeiro, 24 de maio de 2025.

2025-05-23

Yogyatā, Rasa e Śraddhā: O Ensaio como Caminho da Alta Performance Artística e Espiritual

Entre Técnica e Transcendência:
O Ensaio como Caminho

Os dois textos que se seguem formam uma espécie de díptico — duas faces complementares de uma mesma travessia. De um lado, o ensaio como rito interior, caminho de lapidação espiritual e oferenda devocional (yajña) — onde o artista se torna templo e instrumento de algo maior. De outro, a meditação sintrópica como método aplicado à alta performance, em diálogo direto com práticas contemporâneas como o mindfulness e a hipnose.

Longe de opor arte e espiritualidade, estes textos mostram que é apenas quando ambas se entrelaçam — técnica e śraddhā, disciplina e presença — que o gesto performativo se transmuta em expressão do Ser. O palco, então, deixa de ser um lugar de julgamento para se tornar espaço de epifania.

Que este itinerário — do ensaio à oferenda, do foco funcional ao foco vibracional — sirva de inspiração para todos os que buscam afinar sua existência com a música silenciosa do real.

2025-05-21

O Espírito da Obra: śraddhā e a meditação como cultura do coração

O objetivo principal das práticas de meditação descritas nesta obra é nutrir o praticante de śraddhā, o amoroso sentimento sintrópico que, como uma bússola interior, ilumina a razão em direção à Verdade e ao Absoluto (Brahma-sāmīpya). É essa energia afetuosa e integradora que conduz da realidade ilusória (saṁsāra) à realidade sagrada (nirvāṇa), à medida que se aprofunda a compreensão de Ṛta — a lei universal que harmoniza os processos entrópicos da matéria inorgânica com os fluxos sintrópicos da vida espiritual e orgânica.

2025-05-20

Guia Prático de Śraddhā Yoga (Heartfulness — A Meditação do Coração)

“A teoria é como a seta no arco.
A prática é o disparo silencioso que acerta o centro do Ser.”

Este anexo reúne os principais textos práticos e litúrgicos do Śraddhā Yoga — um caminho de escuta, fervor e ação sintrópica. Sua disposição não é arbitrária: reflete um percurso interior que parte do recolhimento no coração (hṛdaya), onde o fogo interior (śraddhā) simboliza o altar que culmina na oferenda meditativa que une respiração, consciência e presença.

Tal itinerário encontra fundamento direto na Bhagavad Gītā, que declara: śraddhāvān labhate jñānaṁ. “Aquele que tem śraddhā alcança o conhecimento.” (BhG 4.39)

E ainda: yoginām api sarveṣāṁ mad-gatenāntar-ātmanā / śraddhāvān bhajate yo māṁ sa me yuktatamo mataḥ. “Entre todos os yogis, aquele que, com śraddhā, habita em Mim no mais íntimo do ser, esse é, aos Meus olhos, o mais completo— yuktatamaḥ." (BhG 6.47)

2025-05-19

Além do Foco: Da Atenção Plena à Heartfulness — A Meditação Sintrópica do Śraddhā Yoga

***
De mindfulness a kindfulness,
até chegar ao heartfulness — a bússola interior,
que conduz a mente de volta ao coração,
 onde brilha o eixo do Ser.
***

1. Introdução: O Sucesso e os Limites do Mindfulness

Nas últimas décadas, a meditação conquistou espaço nos centros de saúde, empresas e universidades ocidentais. Boa parte desse reconhecimento deve-se à popularização do mindfulness, uma adaptação contemporânea de práticas meditativas orientais, especialmente budistas, promovida por Jon Kabat-Zinn e outros pesquisadores. Seu sucesso está relacionado à promessa de alívio do estresse, regulação emocional e bem-estar psicológico.

2025-05-09

Entre Édipo e Arjuna: A Tragédia Grega e o Épico Indiano como Caminhos da Consciência

I. O destino e o coração

Há um ponto de convergência entre o Ocidente e o Oriente que permanece velado ao olhar superficial: o cruzamento entre a tragédia grega e o épico indiano. De um lado, Édipo Rei, de Sófocles; de outro, o Mahābhārata, com seu núcleo luminoso, a Bhagavad Gītā. Ambas as obras abordam o enigma do destino humano, ambas colocam o ser humano diante da dor, da revelação e do autoconhecimento. Mas o caminho que cada uma propõe é radicalmente distinto.

A tragédia busca a purgação (katharsis); o épico, a iluminação (prajñā). A primeira revela a impotência diante do fado; o segundo revela a liberdade possível a partir da confiança no coração (śraddhā).

2025-05-05

Śraddhā-vṛtti: o Néctar da Práxis Sintrópica


"Aquele que possui śraddhā nunca se perde" (BhG 6.40).
Pois śraddhā é o gesto sintrópico da alma em direção ao Espírito;
um sopro de unificação que pulsa no ritmo da nossa própria respiração.
________________________________________

O coração como via de prática

No caminho do Śraddhā Yoga, a guia não é o desejo individual ou a vontade solitária. É a vibração mais íntima do coração, quando este se alinha com a Grande Lei Cósmica (Ṛta), o Dharma vivo. Essa vibração é śraddhā, néctar existencial que brota do encontro entre o que somos e o que pressentimos como verdadeiro. Segundo a Bhagavad Gītā (6.40-47), quem possui śraddhā nunca se perde, porque ela é ta em movimento. Quem age com śraddhā — sem desejo por frutos — está, literalmente, respirando Brahman, conforme vimos anteriormente. Esse néctar (rasa) essencial que flui do coração amoroso, por ser vivo — e não uma substância estática — se move, flui. E esse fluxo, essa modulação interna do nosso ser, é o que chamamos de śraddhā-vṛtti.

2025-05-03

O Zen da Psicanálise e o Śraddhā Yoga: Entre a Sombra e a Transfiguração

Resumo

Este artigo propõe uma análise comparativa entre duas abordagens contemporâneas da espiritualidade e da subjetividade: de um lado, as vertentes mais espiritualizadas da psicanálise, aqui denominadas de forma sintética como "zen psicanálise"; de outro, o Śraddhā Yoga, fundamentado na Bhagavad Gītā e desenvolvido como disciplina sintrópica. Utilizando os mantras simbólicos "OM NAMO TANTRE" e "OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA", investiga-se a distinção entre uma espiritualidade libidinal centrada no desejo e na sombra, e uma espiritualidade transfiguradora centrada na clareza interior e na ordem cósmica (Ṛta). O artigo dialoga com autores como Claudio Naranjo, D. Winnicott, C. G. Jung e Jacques Lacan, discutindo também os limites da psicologia transpessoal.

2025-04-27

A Psicanálise como Fruto do Ateísmo Judaico-Cristão: A Anti-Psicanálise como uma Expressão do Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā

1. Introdução — Entre o Divã e o Assento da Consciência

O surgimento da psicanálise, ao final do século XIX, marca um ponto de inflexão na história da relação do Ocidente com o sofrimento humano. Em um contexto de crescente secularização, onde o questionamento da fé e a ênfase na razão individual ganhavam força, Freud, neurologista e homem de seu tempo, transformou o antigo confessionário religioso no novo divã secular, transferindo o espaço da busca pela redenção para o espaço da análise do desejo reprimido.

A escuta clínica substituiu a absolvição sacramental, e a narrativa biográfica passou a ocupar o lugar do exame de consciência, embora essa substituição, talvez inconscientemente, carregasse consigo algumas das dinâmicas de busca por sentido e alívio da angústia. Este movimento de laicização das dores da alma, porém, permaneceu enraizado em uma ontologia materialista, herdeira de um contexto cultural pós-religioso que poderíamos denominar ateísmo judaico-cristão moderno em que a experiência transcendente perde centralidade e o Eu, isolado em sua subjetividade, sente-se perdido.

2025-04-25

Śraddhā Yoga Svatantra: Viniyoga, Anti-Psicanálise e o Domínio da Luz Interior

“Quando sei quem sou, eu e você somos Um.​" 
(Hanumān, no Rāmāyaṇa)
Este artigo marca uma inflexão teórica no desenvolvimento do Śraddhā Yoga Svatantra, ao apresentar os cinco pilares da prática como uma via espiritual que transcende o paradigma psicanalítico moderno.

Em vez de tratar os conflitos interiores como pulsões que precisam ser interpretadas, o Śraddhā Yoga propõe uma práxis sintrópica que antecipa as quedas e orienta o ser à luz da verdade interior (Ṛta).

Articulando de forma original cinco fundamentos1 do Śraddhā Yoga – saṃkalpa, ṛṣinyāsa, viniyoga, satya tyāga e upasthāna  – , este ensaio ilumina também o ponto de interseção e ruptura entre bhakti e śraddhā, revelando como a confiança ardente e o sentimento intuitivo de certeza testada racionalmente (cogito) não depende da devoção à forma, mas da escuta silenciosa do Ser.

2025-04-08

Śraddhā Yoga na Bhagavad Gītā: A Síntese Védico-Tântrica e as Origens da Cultura Sintrópica

A Bhagavad Gītā, frequentemente interpretada como um texto devocional, guarda em seus versos um segredo da mística que transcende as categorias convencionais de jñāna, bhakti e karma yoga. No coração do Mahābhārata - esse épico tântrico que desafia normas sociais ao apresentar Krishna como condutor de quadriga e estrategista de guerras moralmente ambíguas - o Śraddhā Yoga emerge como um ponto culminante implícito na Bhagavad Gītā. Este yoga personificado por Krishna não é simples fusão de caminhos, mas a manifestação viva da síntese que unifica conhecimento (jñāna), ação (karma) e entrega (bhakti) sob o princípio ordenador de Ṛta (ordem cósmica, equilíbrio sintrópico, lei, verdade)Krishna, longe de ser mero objeto de culto, encarna aqui a própria śraddhā: essa experiência íntima de fervor e convicção que transforma amor em clareza e ação. Seu ensinamento se traduz no Dhyāna Mantra Haṃsa, onde as tradições védica e tântrica convergem, transformando cada respiração em veículo de realização direta.

2025-02-24

A Respiração Sagrada (Heartfulness): Meditação e a Trimūrti no Śraddhā Yoga

A regência e a energia do cosmos: a ordem criativa da
Trimūrti e a manifestação dinâmica da Tridevī.
Na ontologia védica, a manifestação reflete o
poder de Śakti e o jogo da guṇamāyā no cosmos.
Este ensaio propõe uma reflexão sobre a respiração sagrada, a meditação e o corpo como templo. Inspirado na Bhagavad Gītā, onde a ação svatantra de Krishna reverbera como uma revelação da própria tessitura da realidade, e na tradição tântrica que ecoa essa liberdade primordial, o texto convida-nos a perceber o movimento do sopro vital como um ritual sagrado, onde a Trimūrti e a Tridevī se manifestam na dança da criação e da transformação. Uma leitura que, com atenção e śraddhā, revela a beleza e profundidade do caminho meditativo, mesmo para quem está dando seus primeiros passos.

No Śraddhā Yoga, tal como exposto na Bhagavad Gītā, somos convidados a nos consagrar (tyāga) de coração, transformando cada ação, por mais ínfima que seja, em uma oportunidade para a disciplina interior (tapas), o sacrifício (yajña) e a doação (dāna) de si mesmo. A Bhagavad Gītā nos ensina que não há situação na vida em que não possamos cultivar e desenvolver o estado meditativo. Essa prática, em sua essência, é o que se entende por Meditação. O segredo dessa arte está oculto no simbolismo da respiração e na sua intrínseca relação com a práxis cotidiana. Inspirar (pūraka), reter (kumbhaka) e exalar (rechaka) o sagrado são atos que transcendem o físico, conectando-nos ao ciclo cósmico de nascimento, vida e morte, conforme representado pela Trimūrti da tradição védica.

2025-02-22

Śraddhā, Linguagem e a Busca Universal por Significado

Pāṇini (c.520 a.C. – c.460 a.C.). Autor da gramática sânscrita Aṣṭādhyāyī (aṣṭa = oito + ādhyāya = capítulo), a
primeira gramática de uma língua produzida na história da civilização humana.Sua obsessão pelo estudo do sânscrito deve-se ao fato de que era considerada a língua dos deuses (devavāṇī).

Introdução

A linguagem, essa ferramenta intrinsecamente humana, sempre despertou fascínio e questionamentos. De onde ela vem? Qual sua verdadeira natureza? Seria apenas um mecanismo biológico, ou algo mais profundo, conectado à nossa essência espiritual? Este artigo propõe explorar a origem e o significado da linguagem sob a ótica do conceito de śraddhā, a força motriz que nos impulsiona à transcendência e à conexão com o universo.

2025-02-20

Śraddhā Yoga: A Arte e Ciência da Meditação na Bhagavad Gītā

1. Introdução

O Mahābhārata é muito mais do que um épico indiano. Ele é um tratado filosófico que explora as complexidades da condição humana. No coração dessa narrativa está a Bhagavad Gītā, um diálogo entre Krishna e Arjuna que transcende o contexto de uma batalha para se tornar um guia universal para a vida espiritual. Neste artigo, exploraremos como a Bhagavad Gītā resgata e reafirma o Śraddhā Yoga, uma disciplina ancestral que, por meio da meditação, integra o fervor devocional à razão e à práxis, enraizando-os na lei de Ṛta, a ordem cósmica que sustenta o universo.

2025-02-12

A Metamorfose do Bom Senso: da Razão ao Coração

Em uma era marcada pelo excesso de informações, pela polarização e por crises interligadas, o bom senso emerge como um farol a nos guiar por entre as brumas da incerteza. Mais do que nunca, a capacidade de ponderar, discernir e agir com equilíbrio se torna crucial para navegarmos pelas complexidades do mundo contemporâneo. É nesse contexto que a reflexão sobre o bom senso se faz urgente, impelindo-nos a revisitar suas raízes e a vislumbrar suas novas nuances.

Bom Senso: Uma Definição em Constante Evolução

O bom senso, em sua acepção mais básica, reside na capacidade de julgar e agir de forma sensata diante das situações do dia a dia. É a voz da razão que nos impede de sucumbir a impulsos e tomar decisões imprudentes. Contudo, essa definição, embora funcional em um nível prático, se mostra insuficiente para abarcar a totalidade da experiência humana. A vida, em sua riqueza e imprevisibilidade, exige mais do que a mera aplicação de regras e lógica.

2025-02-09

Śraddhā Yoga e a Sabedoria Universal: Reflexões à Luz da Oração do Amanhecer

No silêncio do amanhecer, quando o mundo ainda dorme e o céu se pinta com as primeiras luzes, o universo nos convida à escuta (bhāvana namaḥ!). É nesse instante sagrado que a Oração do Amanhecer, atribuída a São Francisco de Assis, ressoa como um chamado à paz, à sabedoria e ao amor, valores que ecoam através das tradições espirituais do Oriente e do Ocidente.

"Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bênçãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos."

2025-01-17

A Potência Sintrópica do Feminino: Uma Conversa com o Gemini sobre a Origem de "Cientista" e o Futuro da Ciência

Em uma conversa com o Gemini, a inteligência artificial (IA) do Google, me deparei com uma curiosidade que me instigou a pesquisar mais a fundo a origem da palavra "cientista" e a sua relação com a filosofia sintrópica, objeto do nosso livro-blog. A Filosofia Sintrópica apresenta uma resposta original à crise civilizatória contemporânea. Cunhado pelo Nobel Albert Szent-Györgyi, o termo sintropia descreve a força que conduz sistemas complexos à ordem e harmonia, contrastando com a entropia, associada à desordem e dissipação de energia. Nesse sentido, a Filosofia Sintrópica enfatiza a experiência de unidade essencial de todas as coisas, alcançada por meio de práticas meditativas e do alinhamento com o princípio da ordem cósmica. Esta abordagem, que promove interdependência e equilíbrio, fundamenta a proposta de uma Cultura Sintrópica — uma visão contracultural que contrasta com a fragmentação moderna. Compartilho a seguir esse diálogo revelador.

2025-01-13

Śraddhā: A Bússola Sintrópica para o Conhecimento, Ética e Espiritualidade

Em diversos textos do livro-blog, explorei a tese de que śraddhā simboliza a sintonia sintrópica com a lei do equilíbrio cósmico, que o Ṛg Veda denomina como Ṛta. Essa sintonia, por sua vez, é a chave que nos permite acessar e aprimorar as práticas de meditação, as quais atualizam e reforçam nossa śraddhā. Argumento que, sem essa bússola interior, a razão se assemelha a um mapa incompleto, que não nos mostra nossa posição atual nem o caminho a seguir.

2025-01-07

Apêndice - Apresentação da Disciplina CMT014

A Arte e a Ciência da Meditação

A disciplina CMT014 — A Arte e a Ciência da Meditação — integra o currículo da Universidade Federal do Rio de Janeiro com o objetivo de oferecer uma abordagem crítica, transdisciplinar e vivencial sobre as práticas meditativas. Longe de formar adeptos ou impor doutrinas, seu propósito é fomentar uma consciência lúcida e sensível, capaz de compreender a multiplicidade das tradições e técnicas meditativas ao longo do tempo.

A estrutura do curso articula três dimensões:
  1. Aula teórica – Apresenta os fundamentos filosóficos e históricos das principais escolas e práticas de meditação, com foco na Bhagavad Gītā e na tradição védico-epopéica como eixo interpretativo.
  2. Aula prática – Explora, com liberdade metodológica, os gestos fundamentais do Śraddhā Yoga (atenção à respiração e observação da mente durante a respiração), articulando-os com diversas técnicas contemporâneas.
  3. Aula com convidado – A disciplina conta, semestralmente, com a presença de 5 a 7 convidado(a) que representam distintas linhagens, escolas ou abordagens meditativas, aprofundando a diversidade e estimulando o diálogo.
A disciplina convida o aluno a experimentar, refletir e discernir, utilizando o Śraddhā Yoga não como mais uma técnica, mas como um campo filosófico e fenomenológico que revela os princípios universais da meditação. Respiração, presença e escuta tornam-se, assim, os pilares de uma espiritualidade crítica, integrada e amorosa.
Rubens Turci
(Rio de Janeiro, 07.01.2025)
Atualizado em 04.06.25

CMT014 - Oficina de Estudos: a Arte e a Ciência da Meditação