Do Nome Terrível ao Tempo dos Ṛṣis
I. PRÓLOGO — O NOME TERRÍVEL E BELO DO INFINITO
(Ṛtadhvanī–Bhāṣya)
Há nomes que dizem o mundo. Há nomes que descrevem o mundo. E há um único nome que devora o mundo enquanto o cria. Esse nome é Kāla. Não é “tempo”. Não é “duração”. Não é “passagem”. Kāla é o poder de Brahman de manifestar e dissolver, o ritmo primitivo que pulsa antes de qualquer vibração, a medida não da mudança, mas do próprio Ser em ação.
Quando a tradição védica declara kālo hi bhagavān — “o Tempo é o Senhor” — não fala de um deus que controla os minutos, mas de uma força que antecede todas as forças, o princípio que permite que algo exista, seja percebido, ou retorne ao Não-Ser.
O erro do Ocidente, durante milênios, foi imaginar que o tempo “flui”. Mas o que flui são os seres, não o Tempo. O que nasce e morre são as formas, não o Tempo. O que começa e termina são os dias — não Kāla. Kāla não passa. Mudamos de forma dentro dele. E quando Krishna se revela a Arjuna e pronuncia kālo ’smi — “Eu sou o Tempo” — ele não está dizendo “eu destruo”, mas algo infinitamente mais profundo: “Eu sou o horizonte ontológico onde tudo emerge.”
Kāla é o ventre e o túmulo, a aurora e o entardecer, o útero dos universos e o fogo que os recolhe, não em conflito, mas em um único gesto — o gesto absoluto da Realidade. A modernidade, com sua física mecanicista, reduziu o Tempo à sombra de um relógio. Mas a sombra não explica a luz. E nenhum relógio pode medir aquilo que mede o relógio. Kāla não é a sucessão de instantes — é a inteligibilidade do instante. Não é extensão — é escala. Não é linha — é verticalidade. Não é causa e efeito — é o ritmo que faz causa e efeito serem possíveis. Por isso, falar de Kāla é tocar o núcleo incandescente do real. É abandonar o conforto das horas e entrar na atmosfera rarefeita onde apenas consciência, sintropia e silêncio respiram. E é nesse silêncio — o mesmo que antecede o AUM — que este ensaio começa. Porque compreender Kāla não é compreender um conceito, mas lembrar-se de uma música antiga, uma música que o cosmos inteiro canta, mas apenas o coração desperto consegue ouvir.
II. O EQUÍVOCO OCIDENTAL — O TEMPO COMO LINHA
Nenhuma civilização errou tanto sobre o Tempo quanto o Ocidente moderno. E não por falta de inteligência — mas por excesso de geometria. O Ocidente confundiu o mapa com o território, e transformou o Tempo — que é profundidade viva — numa régua morta.
O equívoco nasceu no instante em que a mente europeia assumiu que o real só pode ser compreendido se for estendido. Espaço é extensão. Matéria é extensão. Tempo é extensão. Assim decretou Descartes, assim consolidou Newton, assim se organizou toda a ciência clássica. Foi um triunfo da razão — e uma amputação do real. Porque uma linha pode medir trajetórias, mas jamais pode medir o Ser.
Para a mecânica moderna, o tempo é uma reta infinita na qual os eventos são pontos. Mas nenhum ponto sabe que existe. Nenhuma linha conhece a si mesma. E nenhuma reta explica o que dá origem ao movimento. O paradigma ocidental transformou Kāla numa espécie de relógio cósmico, como se o Absoluto fosse um contador de segundos.
Essa é a raiz do erro: confundir sucessão com sentido; mudança com duração; causalidade com consciência. A linearidade temporal criou duas ilusões devastadoras:
1. A ilusão da distância
Como se o passado estivesse “lá atrás” e o futuro “lá na frente”. Mas nem passado nem futuro existem fora da consciência que os percebe.
2. A ilusão da separação
Como se os eventos fossem partes desconectadas, quando, na verdade, são pulsos de uma mesma vibração em frequências diferentes. A ciência clássica mediu o tempo como extensão… e perdeu sua profundidade. Tentou controlar o devir… e perdeu o Ser. Tentou quantificar o ritmo… e perdeu a música.
Ao tratar o tempo como linha, o Ocidente cometeu seu maior erro filosófico: assumiu que o real se move, quando o que se move é a percepção. Kāla — o Tempo real — não precisa de movimento para existir. Ele é o campo ontológico que torna o movimento possível. A linha do relógio é apenas a sombra deste campo. E confundir sombra com realidade é o pecado original da epistemologia moderna.
Assim, antes de compreendermos o tempo como escala harmônica, como ritmo, como fractalidade, é preciso limpar o terreno da ilusão geométrica:
O Tempo não é extensão.O tempo não flui.O Tempo não passa.Nós é que passamos dentro dele —como ondas que surgem na superfície de um oceano que permanece.
E esse oceano não é Chronos, não é Kairos, mas Kāla — o nome terrível e belo do Infinito.
III. O TEMPO DOS ṚṢIS — KĀLA COMO BRAHMAN EM MOVIMENTO
Para o pensamento védico, o Tempo não é uma dimensão. É um aspecto de Brahman. Brahman possui infinitos nomes; mas quando decide se mover, quando decide manifestar mundos dentro de si mesmo, Ele recebe um nome particular: Kāla.
Kāla é Brahman quando vibra, quando respira, quando se abre em ritmos que dão origem a galáxias, ciclos, eras, batimentos cardíacos, inspirações, intuições e destinos. Se Chronos mede a sequência dos eventos, e Kairos mede a oportunidade do instante, Kāla mede o próprio Ser. Kāla é Brahman em ação. Brahman é Kāla em repouso. Essa é a ontologia que o Ocidente nunca compreendeu — porque confundiu movimento com deslocamento. Mas o movimento de Kāla não é deslocamento físico. É o vibrar do absoluto em múltiplas frequências.
Inventamos a palavra “tempo” porque não tínhamos coragem de nomear o sagrado que nos atravessa. Os Ṛṣis tinham essa coragem.
Eles sabiam que:
- o tempo não flui: ressoa;
- o tempo não progride: pulsa;
- o tempo não se estende: se aprofunda;
- o tempo não é horizontal: é vertical;
- o tempo não é medido: é ouvido.
Kāla é um som antes de ser um número. Por isso, os Ṛṣis, ao descreverem a origem dos mundos, não falam em “começo” ou “fim”, mas em respiração: sa aikṣata — bahu syām. “Ele contemplou: que eu me torne muitos.” Esse “muitos” não são objetos: são frequências temporais. O universo não nasce no espaço. Nasce no ritmo. Nasce no instante em que Brahman decide contrair-se e expandir-se, criando um batimento infinito: a sístole e diástole cósmica que as Upaniṣads chamam de spanda — o tremor original.
Esse tremor é Kāla. Por isso, compreender Kāla é compreender que toda forma vive em um ritmo que não é seu, que todo ser é movido por um pulsar que o excede, e que o tempo não é uma trajetória, mas uma mandala na qual dançamos. A trajetória nasce da ignorância. A mandala nasce da visão.
Por isso a Bhagavad Gītā declara: kālo ’smi — “Eu sou o Tempo.” Porque não há outra forma de Krishna revelar: “Eu sou o movimento secreto de todas as coisas.” Assim, enquanto o Ocidente pergunta “o que é o tempo?”, os Ṛṣis perguntam: “o que respira quando nada respira?” A resposta é Kāla. O Único que existe quando não há forma, não há cosmos, não há voz que diga “eu”. A pulsação silenciosa no interior do Nada luminoso.
E até aqui podemos ir sem perder o fôlego. Daqui em diante, para compreender Kāla, é preciso entrar no próprio movimento da luz.
Continua em “KĀLA e o Espaço-Tempo Sagrado (II) — O Tempo Fractal, o Campo Sutil e o Ritmo da Consciência”
Próximo texto: KĀLA e o Espaço-Tempo Sagrado (II)
