Onde o Corpo Aprende a Ouvir
O pensamento atinge sua maior clareza não quando comanda, mas quando se aquieta para escutar.
Este silêncio não é abdicação da lucidez, mas seu amadurecimento último: a lucidez torna-se, enfim, permeável ao que a excede. É nesse limiar — onde o intelecto se curva sem se apagar — que o corpo inicia seu verdadeiro aprendizado: o de ouvir.
Ouvir, aqui, transcende a captação de sons. É deixar-se tocar por aquilo que pulsa antes da linguagem. É permitir que o ritmo da vida atravesse a carne sem ser imediatamente traduzido em juízo, defesa ou reação. Existe uma sabedoria anterior às palavras, uma inteligência que não argumenta, mas reconhece.
Esse reconhecimento não ocorre fora do corpo — dá-se no corpo e, mais precisamente, no coração enquanto centro de escuta. O hṛdaya não é metáfora afetiva nem órgão simbólico: é o lugar onde sentir, compreender e agir deixam de ser funções separadas. Quando o coração escuta, o corpo inteiro se torna atento.
É nesse espaço que a ética começa a germinar — não como norma imposta, mas como sensibilidade desperta. Antes de qualquer escolha moral, há um momento mais originário: o instante em que algo em nós reconhece o peso do gesto, a consequência do toque, a reverberação do que se faz e do que se consente. Esse instante não é racional no sentido comum, mas é profundamente lúcido. Não é emotivo, mas profundamente sensível.
A cultura moderna ensinou o corpo a funcionar, produzir, resistir. Raramente, porém, o ensinou a ouvir. O resultado é uma cisão silenciosa: agimos sem perceber o que nos atravessa; decidimos sem escutar aquilo que pede cuidado. Recuperar a escuta não é um retorno romântico à natureza, mas um gesto de maturidade espiritual — um retorno ao ponto onde responsabilidade e sensibilidade ainda não se separaram.
Ouvir o corpo é também reconhecer seus limites. A fome, o cansaço, a repulsa, o desejo — tudo isso fala. Mas fala de modos que não se deixam traduzir por slogans ou sistemas morais prontos. Escutar exige demora— exige permanecer no lugar onde o desconforto ainda não se resolveu em explicação.
É nesse intervalo que algo começa a se reorganizar por dentro. Não por imposição, mas por afinamento. O corpo aprende a discernir não por cálculo, mas por ressonância. Aprende a dizer “sim” e “não” a partir de uma escuta que já não é instintiva, nem puramente racional — mas integrada.
Aqui nasce o solo ético do qual brota toda escolha autêntica. Não como regra, mas como resposta viva.
Antes de qualquer tomada de posição, há este aprendizado silencioso: o corpo que aprende a ouvir — e, ao ouvir, começa a saber.
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Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 2025.
