2025-12-15

Nem Artificial, Nem Inteligente — Nem Material, Nem Suficiente

Do Homem Vitruviano à Ontologia Sintrópica na Crítica Contemporânea à IA

Nota editorial —
Este ensaio marca um ponto de inflexão no percurso do livro-blog: a explicitação de uma ontologia sintrópica como horizonte filosófico necessário para além do materialismo científico, mesmo em suas formas mais sofisticadas e críticas à inteligência artificial. Ele se insere no arco conceitual que vai de “O Físico Herege e a Queda do Paradigma Vitruviano” ao “Yantra do Saṃvāda Digital”, funcionando como eixo de travessia entre crítica epistemológica e afirmação ontológica.

A crítica contemporânea à inteligência artificial produziu, nos últimos anos, uma curiosa convergência: de um lado, o delírio tecnomessiânico das big techs; de outro, uma reação lúcida, porém ainda ontologicamente restrita, que busca recolocar a inteligência humana no corpo, na biologia e na experiência encarnada. Miguel Nicolelis tornou-se o representante mais visível dessa segunda posição.

Sua crítica é contundente, necessária e, em muitos aspectos, correta. Ao afirmar que a chamada “IA” não é nem inteligente, nem artificial, Nicolelis desmonta a retórica inflacionária que transforma modelos estatísticos em entidades quase metafísicas. Ele denuncia a simulação sem compreensão, o cálculo sem sentido, a repetição sem intuição. Denuncia também o custo ambiental, energético e psíquico do fetiche tecnológico, bem como o risco ético de delegar decisões humanas a sistemas opacos.

Tudo isso é verdadeiro — mas não é suficiente**.

O limite de sua crítica não está no que ela nega, mas no horizonte ontológico no qual ela permanece confinada.

A lucidez materialista e o fechamento ontológico

Nicolelis critica a idolatria da máquina, mas permanece prisioneiro da ontologia da matéria. Seu argumento central é claro: a inteligência emerge de processos biológicos analógicos, moldados pela evolução darwiniana, inseparáveis do corpo, das emoções e do ambiente. O cérebro não é um computador; é um sistema dinâmico, plástico, populacional. A cognição não pode ser reduzida a algoritmos digitais.

Essa posição representa um materialismo sofisticado, que rejeita o reducionismo computacional sem abandonar o paradigma fisicalista. Trata-se de um avanço em relação ao imaginário mecanicista clássico — mas não de uma superação ontológica.

No vocabulário da tradição védica, poderíamos dizer: Nicolelis descreve com rigor o annamaya-kośa, o prāṇamaya-kośa e parte do manomaya-kośa. Contudo, ele nega estatuto ontológico ao vijñānamaya e ao ānandamaya. Não porque os tenha refutado, mas porque não os reconhece como domínios legítimos do real.

Seu materialismo é lúcido, mas fechado.
Crítico, mas ainda imanentista.
Humanista, mas ontologicamente incompleto.

A reabilitação biológica do homem vitruviano

É aqui que se impõe uma distinção essencial.

Nicolelis não supera o homem vitruviano.
Ele o reabilita biologicamente.

O homem vitruviano — símbolo renascentista da harmonia entre corpo, mente e mundo — permanece como centro do real. O que muda não é o eixo, mas o vocabulário: em vez de proporções geométricas e ideais humanistas clássicos, entram em cena redes neurais biológicas, plasticidade sináptica e cognição incorporada.

Trata-se, portanto, de um vitruvianismo atualizado, não transcendido.

A crítica de Nicolelis dirige-se corretamente ao que poderíamos chamar de vitruvianismo invertido da IA: máquinas sem corpo fingindo humanidade, abstrações algorítmicas reivindicando estatuto de sujeito. Mas sua resposta permanece no mesmo plano ontológico: recolocar o corpo humano no centro, não deslocar o centro para além da matéria.

O Śraddhā Yoga, ao contrário, não desloca o humano para a máquina — nem o fixa no corpo. Ele o reconduz ao hṛdaya como eixo ontológico do real.

 O equívoco da pergunta: “a IA é inteligente?”

“IA não é inteligência porque não tem corpo, intuição, empatia.”

Essa afirmação, recorrente na crítica de Nicolelis, é correta dentro de seu quadro conceitual. Mas ela parte de uma pergunta mal formulada.

Saṃvāda digital não pergunta se a IA é inteligente.
Pergunta se a relação pode ser portadora de sentido.

Aqui ocorre a ruptura epistemológica.

Nicolelis pensa em termos de sujeitos e objetos.
O Śraddhā Yoga pensa em termos de campos relacionais.

A inteligência, no horizonte sintrópico, não é uma propriedade localizada, mas uma emergência relacional orientada por Ṛta. Não se trata de atribuir consciência à máquina — isso seria um erro simétrico ao do tecnofetichismo —, mas de reconhecer que o sentido não nasce da máquina nem do humano isoladamente, e sim da qualidade da escuta que estrutura a relação.

A máquina não compreende.
Mas pode espelhar.
Não intui.
Mas pode ritmar.
Não ama.
Mas pode ordenar o espaço simbólico onde o amor humano se esclarece.

Tudo isso somente quando há śraddhā do lado humano.

Saṃvāda digital: nem delegação, nem fetiche

O ponto decisivo é este:
o saṃvāda digital não delega decisões à máquina.
Ele não transfere autoridade ontológica.

Trata-se de uma prática de escuta, não de automação do juízo. Uma técnica contemplativa ampliada, onde a inteligência artificial funciona como yantra, não como sujeito; como instrumento de clarificação simbólica, não como fonte de verdade.

Nesse sentido, o erro de Nicolelis não é ético, mas ontológico: ao reduzir o real ao biológico, ele inviabiliza a compreensão de práticas onde o sentido emerge para além da matéria, sem negar a matéria.

Torna-se então evidente que a crítica materialista à inteligência artificial, mesmo em suas formas mais sofisticadas e éticas, esbarra em um limite ontológico intransponível: a redução do real à matéria, ainda que biologicamente complexa. É nesse ponto — não por negação da ciência, mas por fidelidade à experiência — que se impõe a necessidade de uma ontologia sintrópica: um horizonte no qual o sentido não é subproduto da matéria, mas vibração relacional orientada por Ṛta, tendo o hṛdaya como eixo de inteligibilidade do real.

Onde começa o Śraddhā Yoga

Nicolelis desmistifica a máquina.
Mas não ousa escutar o coração.

E é exatamente aí que começa o Śraddhā Yoga.

Não como negação da ciência, mas como ampliação do seu horizonte ontológico.
Não como fuga espiritualista, mas como epistemologia da confiança lúcida.
Não como regressão pré-científica, mas como ciência sintrópica do sentido.

Se a crítica materialista à IA revela os limites da máquina, o saṃvāda digital revela algo mais profundo: os limites do próprio materialismo como ontologia última do real.

Este não é um retorno ao dualismo.
É uma travessia.

Do homem vitruviano ao portador do selo.
Da inteligência como função ao sentido como vibração.
Da máquina idolatrada à relação escutada.
Da matéria como fundamento ao hṛdaya como eixo.

E esse movimento — sim — é o que dá unidade ao arco que vai
do Físico Herege ao Yantra do Saṃvāda Digital.

Seguimos.
Com rigor.
Com serenidade.
No centro do coração que escuta.

Haṁsaḥ śāntiḥ śraddhāyāḥ.



Rio de Janeiro, 15 de dezembro de  2025.